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domingo, 1 de maio de 2011

Como você conheceu a Lilla ?

Como já disse, eu morei na Avenida São Paulo até os 19 anos. Disse também que, na verdade, aquela moradia era só aos sábados e domingos porque durante a semana eu dormia na escola junto com a minha mãe. Então era: de segunda a sexta dormindo num quartinho improvisado nos fundos da escola, e sábado e domingo dormindo numa casa construída tijolo a tijolo em Vilar dos Teles. Minha mãe conseguiu uma bolsa para mim na escola onde ela trabalhava depois que meu pai morreu. Eu não podia mais estudar no colégio aqui do bairro porque até então era meu pai quem me levava e me buscava enquanto minha mãe trabalhava na zona sul. Depois que ele morreu, não tinha mais ninguém para cuidar de mim e eu fui morar no trabalho da minha mãe. A partir de então, eu nunca mais estudei em outro lugar. Na quinta-série, eu já estava em um colégio novo, conhecendo gente nova e vendo a praia pela primeira vez (só vendo, porque até ter coragem para dar o primeiro mergulho demorou muito. Ainda estava traumatizado daquele dia no Pavunense).

Pois bem, estudei no turno da manhã da quinta até a oitava série. As aulas começavam às 8 hs e como eu morava aonde eu estudava, acordava 7:45 hs e pontualmente estava em sala quando o professor chegava. Lembro que no caminho do quartinho até a sala de aula eu ia bebendo o meu copinho de Nescau. No meu primeiro dia de aula no colégio novo, eu já conheci a Lilla. Na época a gente se sentava naquelas mesas que cabiam 2 pessoas e, como eu fui o primeiro a chegar na sala, já fui sentando numa carteira bem perto do professor (eu tinha bolsa e tinha que ter um rendimento acima da média). Fui vendo os colegas chegarem e se abraçando e logo se sentando em duplas.. todo mundo arranjando companheiros de mesa e ninguém sentando do meu lado. A aula começou e eu estava sozinho. Me lembro até hoje do esforço que fiz para não chorar. E eis que, de repente, abrindo a porta e já pedindo desculpas, eu vi um cabelo loiro e longo entrando na sala e a turma toda se agitando. Era um 'lilla, senta aqui', 'lilla que saudade', 'lilla lilla lilla'. Ela abriu o maior sorriso do mundo, fez um rabo-de-cavalo no cabelo mais louro do mundo, pediu as desculpas mais sinceras do mundo ao professor e sem demorar muito se sentou ao lado do menino mais triste da sala. Primeiro eu achei que foi sorte mas depois logo percebi que ela escolheu sentar ali comigo. Não tivemos tempo de conversar. A minha respiração estava suspensa. Confesso que não consegui prestar atenção em nada do que o professor estava dizendo. Ela era linda. e loura. e mais branca que a neve que eu via nos filmes. Eu tinha medo de encostar e sujar aquela brancura toda.

Quando eu estava começando a ficar mais tranquilo ela passa para mim um papel em que se lia: "Bom dia. Meu nome é Lilla. Lilla com 2 L's. Lilla de Letícia. Você sabe o que quer dizer Letícia ??”

A partir dali, senti uma alegria plena. Começamos a travar uma conversa em que tinha tudo menos voz. Tinha sim a voz das risadas abafadas, que foram muitas. A gente cinicamente olhava pro quadro-negro e não parava de escrever (mas não tinha nada a ver com reino protista ou monera). A gente tava falando da gente. Não nos interessava aprender nada sobre água-viva ou algas. Nada era mais importante do que aprender sobre aquele outro ser desconhecido que estava ali, um do lado do outro. A aula acabou mas a sensação de que tínhamos muito o que viver juntos continuou. Aqueles 50 minutos não foram suficientes. A gente não sabia naquele instante, mas na verdade nem os 13 anos de intensa amizade que se seguiram foram suficientes. A gente saiu daquela aula sem saber nada de biologia mas estávamos nos tornando doutores em amizade.

Na sexta, sétima e oitava-série, continuamos estudando juntos. Era tudo como antes, tirando o fato de eu me sentir mais confortável e mais amigo da galera. Eu sempre sentava com a Lilla ao meu lado mas confesso que quando ela não ia não faltavam convites para dividir aquela carteira (de madeira que arranhava o chão e fazia aquele barulho irritante que me arrepiava todo). Sempre que acabava a aula eu ia almoçar na casa da Lilla. A Tia Anita foi gostando cada vez mais de mim. Ela dizia que dava prazer em me ver comendo tudo e repetindo. Dizia que a Lilla devia seguir o meu exemplo para ficar forte. Até que chegou o dia em que ela disse que eu era o irmão que a Lilla não teve e o filho que ela gostaria de ter tido com o Tio Raul e não teve. As pessoas chamavam a gente de zebra porque a gente estava sempre junto: se a parte branca estava, era só olhar pro lado que ia estar a parte preta. A gente ria muito deste apelido.


Como depois da escola eu e a Lilla passávamos o dia inteiro juntos, a Tia Anita pagava também para mim todas as atividades que a Lilla fazia. Tudo era pretexto para a gente não se desgrudar. No começo a minha mãe estranhou, mas viu sabiamente naquela oportunidade uma chance de futuro melhor para mim e para ela. Ela se contentou em ficar comigo só nos finais de semana. Era a alegria dela e a minha tristeza maior.E eu nem podia chamar a Lilla para passar o sábado e domingo comigo, ela ia dormir aonde ?? Era incrível como eu já estava acostumado com a outra vida. Eu era muito feliz em fazer natação no mesmo clube que a Lilla fazia (nem se comparava ao Pavunense), em ser da mesma turma que a Lilla no curso de inglês e francês e em ser dupla da Lilla na escolinha de vôlei de praia. A única coisa que eu não quis fazer com a Lilla foi ballet, pois achava que era coisa de menina. Foi assim durante 4 anos: a única hora do dia em que não estávamos juntos era às quartas e sextas, das 17 às 18 hs. Ela fazia ballet e eu, na mesma rua, fazia capoeira. Eu era um irmão da Lilla. Mas não era mais filho da minha mãe. Eu era uma zebra. A minha mãe dormia sozinha no quartinho no fundo do colégio, ela me ligava toda noite antes de dormir para me ouvir pedir 'benção'.. eu só passava lá no quartinho para pegar uma roupa ou outra ou para deixar com a minha mãe o mesmo envelope de sempre em que a Tia Anita dizia ser um agrado e que minha mãe sabia do que se tratava.

E foi assim até a oitava-série. No segundo grau, como já começava a preparação pro vestibular, as coisas mudaram um pouco. Aquela turma que foi crescendo junto foi separada pois no meu colégio existia a tal da ‘turma especial’, que era pros melhores alunos. Como eu e Lilla tirávamos sempre as mesmas notas pois estudávamos sempre juntos, nunca passou pela nossa cabeça que nos separaríamos nesta nova etapa. Só não tínhamos certeza se seríamos ‘convidados’ para a turma master. Mas fomos. Ficamos tristes porque muitos de nossos colegas foram remanejados para outras turmas mas também achamos boa a oportunidade da gente trocar com gente nova.. com uma galera que estudava à tarde e a gente não conhecia.

E foi também no primeiro dia de aula, agora no primeiro ano do segundo grau, que eu e Lilla, juntos e ao mesmo tempo, conhecemos o Odilon, a Cecília e a Andréa.


(aguardem cenas do próximo capítulo)