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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Leveza






"(...)Nesta conferência, buscarei explicar - tanto para mim quanto para os ouvintes - a razão por que fui levado a considerar a leveza antes um valor que um defeito; direi quais são, entre as obras do passado, aquelas em que reconheço o meu ideal de leveza; indicarei o lugar que reservo a esse valor no presente e como o projeto no futuro.

Começarei por esse último ponto. Quando iniciei minha atividade literária, o dever de representar nossa época era um imperativo categórico para todo jovem escritor. Cheio de boa vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acontecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sintonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramático ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever. Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo - qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas.

Às vezes o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.

O único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas; Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra - como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica. Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo. Mas sei bem que toda interpretação empobrece o mito e o sufoca:não devemos ser apressados com os mitos; é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de sua linguagem imagística. A lição que se pode tirar de um mito reside na literalidade da narrativa, não dos acréscimos que lhe impomos do exterior.

A relação entre Perseu e a Górgona é complexa: não termina com a decapitação do monstro. Do sangue de Medusa nasce um cavalo alado, Pégaso; o peso da pedra pode reverter em seu contrário; de uma patada, Pégaso faz jorrar no monte Hélicon a fonte em que as Musas irão beber.Em algumas versões do mito, será Perseu quem irá cavalgar esse maravilhoso Pégaso(...).Quanto a cabeça cortada, longe de abandoná-la, Perseu a leva consigo (...), uma arma que utiliza apenas em casos extremos e só contra quem merece o castigo de ser transformado em pedra.(...)É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como um fardo pessoal."

Italo Calvino,"Seis propostas para o novo milênio"