É pessoal e intransferível.
Cada qual tem o seu.
Desde os inícios.
Cada qual tem o seu.
Desde os inícios.
No entanto, por um tiro certeiro e preciso, eis que agora reina no centro da sala esvaziada, um dragão de ronco lento e pesaroso. Um dragão entristecido.
É que no exato instante em que Letícia se lançou pela janela, ela deixou o bicho preso ali dentro do quarto. Ela se lançou porque o dragão a sufocava o íntimo. E então, certeira, da forma como era preciso, ela desistiu.
Só que dragões são grandes e invisíveis. São metáforas não porque não existam, mas porque vê-los seria para o homem um risco final a cortar sua pele e revelar o próprio íntimo. Seria algo como a morte súbita e sem explicação.
É que no exato instante em que Letícia se lançou pela janela, ela deixou o bicho preso ali dentro do quarto. Ela se lançou porque o dragão a sufocava o íntimo. E então, certeira, da forma como era preciso, ela desistiu.
Só que dragões são grandes e invisíveis. São metáforas não porque não existam, mas porque vê-los seria para o homem um risco final a cortar sua pele e revelar o próprio íntimo. Seria algo como a morte súbita e sem explicação.
Mas ele ainda existe.
Só que os pais de Letícia lacraram a janela do quarto. Poucos dias após sua morte, eles decidiram sem dizer palavra alguma que era preciso apagar o fato – duro como um muro de pedras – de que sua filha preferira o salto ao jantar.
De que Letícia preferiu partir do que tentar resolver tudo como sempre achavam terem resolvido: ao redor da mesa da sala.
Então o medo cegou seus olhos. O pavor da culpa, a tentativa de atar o que para sempre será desatado. Eles cimentaram a janela. Mas o horror persistiu no branco da parede do quarto. O horror voa solto em meio ao vento empoeirado.
Ele morre aos poucos.
No entanto, persiste no quarto já sem cama ou armário. Ele ali apavorado, sem compreender porque o mundo o repudia e se afasta do seu bafo (o baforar de um dragão é seu primeiro contato; sua forma quente de dizer prazer em conhecê-lo).
Ele ali dentro irritadiço e machucado, fazendo sobre as coisas de Lilla alvoroço e estrago. Despencando caixas, procurando comida, revirando roupas e seguindo o cheiro dela que partiu. O que ele procura talvez seja só o seu abrigo que ruiu. Mas como achá-lo se a janela foi lacrada?
Ele desde então não fechou os olhos.
Pois dois meses antes, dormia dentro de Lilla incontido. Queria ser o que a garota em seu íntimo alimentava em segredo. E o íntimo dela era ele, o dragão que agora repousa sem casa ainda é a Lilla, porém com a face desarranjada.
Dois meses depois, eis que ali se encontram os amigos de Letícia para dividir entre si os pertences dela que ainda ocupam o quarto. O apartamento vazio e semi-reformado, aguarda – ansioso – a saída desse dragão para ser vendido ou alugado.
Ele não foi brincado.
Porque Lilla não conseguiu cavalgá-lo. Por isso ele está preso no quarto, como se estivesse de castigo. Ela pediu licença sem pedir, ela fugiu sem deixar bilhete. Isso é tudo o que sabemos. Mas ali, dentro do seu quarto, o dragão se comove com o manuseio dos amigos que um a um, adentraram sua prisão e dela retiram todas aquelas coisas que ele mesmo já havia vasculhado. O dragão, preso dentro do quarto, aos poucos se sente menos enclausurado.
Cecília informou aos amigos: sobrou aquela pelúcia, alguém vai querer? Não, ninguém quis, ninguém disse nada. Dentro do quarto por agora só mesmo o dragão e uma pelúcia estranha, judiada e conhecida. Eles se olham. Estáticos. Que estranha semelhança essa que nos aprontaram, talvez um deles pense.
Ele brinca com a pelúcia e a destrói.
Enquanto na sala, os amigos não cavalgam aquilo que Lilla não soube cavalgar. Eles ali na sala reunidos hoje tentam cavalgar a si próprios (sem saber ao certo que coisa estranha é essa que carregam dentro de si). O vazio, o buraco, o silêncio, a azia, o tempo, a loucura, o mito, o que não tem nome, o inominável, o nó, o vácuo, o absurdo, este absurdo imenso que não parece fazer sentido e que, no entanto, dói.
Doo logo existo.
Então,