lembro.
de quando eu pedi uma boneca para a minha mãe, ela não me deu. minha mãe ficou chateada mas tentou disfarçar. lembro que eu queria tanto mas tanto que cheguei a desenhar como era a boneca dos meus sonhos. eu sabia que meninos não brincavam de boneca mas na casa da Lilla eu brincava;
daquela febre que era ter um tamagoshi. toda a turma tinha e a professora dava um intervalo dentro da própria aula para a gente poder dar pizza, hambúrguer, botar para estudar, matar a sede... eu usava o intervalo para me trancar no banheiro. Quando a Lilla deixou o tamagoshi dela cair no chão, a Tia Anita logo comprou outro e, a partir daí, eu passei a ser pai do tamagoshi quebrado que era dela e não precisava mais ir ao banheiro. enquanto o meu ia ficando cada vez maior e já já ia virar morcego, ela já tinha se enjoado do amarelo e já estava usando o verde-claro;
do nosso primeiro natal juntos. ela ganhou o cavalete, uma tela branca, um pincel, umas tintas e um bilhete escrito: ‘que a imensidão de todo este branco ganhe contornos coloridos. Ass.: papai-noel’;
do altarzinho que ficava no quarto dela, em frente a cama. a gente sempre conversava com os duendes, os anjinhos e os gnomos (principalmente naquelas semanas de prova);
de quando eu quase fui federado. a Lilla não jogava mas me assistia sempre. ou sentada no quiosque tomando água-de-côco ou torcendo por mim entre um mergulho e outro. esta foi a bola da minha primeira medalha de ouro. o jogo acabou num ace. a lilla dizia que não tinha nada mais bonito do que me ver saltando. que eu combinava mais com o ar do que com a terra. ela sempre dizia que queria experimentar o salto;
de: ‘a Lilla é minha amiga ? ela gosta mais de mim do que do Rogerinho da oitava ? a gente vai ficar sempre junto ? a gente vai ser enterrado no mesmo dia ? tem alguém aqui agora além de nós ? eu sou bonito ? os meninos da sala riem de mim porque eles têm inveja ?’;
da gente brincando de ser grande e de ter um computador portátil para poder levar para onde bem quisesse;
que ele embalava as nossas tardes quando a gente ‘tinha porque tinha’ que aprender ‘a coreografia do momento’ para dançar na matinê;
que a gente ouvia o LP da época que o Vô Mario era vocalista de uma banda de rock chamada os improváveis;
que os controles foram perdidos quando a Lilla botou pela nona vez o filme do Gael;
que o Tio Raul conseguiu da gente ir a uma gravação do Xuxa Park. eu e lilla participamos de uma gincana de meninos contra meninas. eu queria ser do grupo das meninas mas a Xuxa não deixou. acho que ela percebeu que eu fiquei magoado e, no intervalo, ela pegou o LP que estava nas mãos da Lilla e deu um autógrafo;
das vezes que a gente saía da escola, almoçava e passava uma tarde inteira tentando aprender as coreografias. todas as coreografias. a bruaca da vizinha do lado sempre reclamava do som. ela era a Carla Peres e eu era a Débora Brasil. tentei algumas vezes ser a Sheila Carvalho mas a Lilla dizia que eu tinha um quê de Débora;
que eu nunca entendi aonde estava a graça daquela história mas não sei porque só agora eu quero descobrir;
de ser o primeiro presente que dei a ela, com o dinheirinho que ganhei pela vitória no campeonato de vôlei. na letra I já tinha escrito Inácio;
do ano em que o mundo não acabou e a gente continuou junto. a gente morrendo de medo esperando alienígenas e disco-voador e do alto só vinham os fogos de artifício;
que ela era completamente apaixonada pelo Gael e me fez ver Diários de Motocicleta 8 vezes seguidas;
da época que ela era a Emma e eu só podia ser a Melanie Brown e porque só a gente sabia toda a coreografia de who do you think you are ?;
dos únicos quadros que ela assinou com pseudônimo;
que ela sempre quis me ensinar a pintar mas não sei porque só agora eu quero aprender;
que para mim era lençol ou colcha. descobri edredom só na casa da Lilla. a gente dormia junto e eu sempre dizia que edredom era microondas de quarto de rico.
que tinha um furinho de queimado bem no meio, da vez que eu e a Cecília estávamos fumando escondido no quarto da Lilla enquanto ela tomava banho. ela saiu do banheiro e veio fumar com a gente antes que a Tia Anita chegasse. e, na pressa, a ponta caiu e queimou a toalha;
dela dizendo: ‘maiô é para piscina e biquíni é para praia’. como eu tinha medo de piscina, eu nunca vi a Lilla usando ele. mas sempre imaginei como ficaria;
que a gente tava no Centro comprando fantasia para o carnaval e, de repente, ela disse que precisava ir ao banheiro. ela voltou de lá mais branca do que o de costume dizendo que estava sangrando. eu me apavorei e pela primeira vez fiquei tão branco quanto ela. ela disse que não sabia o que fazer mas que tinha se resolvido com bastante papel higiênico mas que precisava de outra calcinha. entrei na primeira loja que encontrei e comprei logo um pacote com sete calcinhas. voltei correndo, entreguei o pacote para ela e depois de passado o susto, ela me disse gargalhando: ‘inácio, para que sete calcinhas se eu só tenho uma perereca ?’;
que foi o primeiro presente que ela ganhou do Conrado, quando fizeram 72 horas;
que quando eu comecei a dormir mais do que de vez em quando na casa da Lilla, a Tia Anita falou que já era hora de eu parar de usar roupas improvisadas e disse que ia ‘dar um jeito nisso’. no dia seguinte, ocupando parte do armário da Lilla, estava ele pendurado num cabide roxo;
da camisa que a Rita trouxe para ela da lua-de-mel com o Caco. eu sempre achei que a Rita tinha um gosto duvidoso para roupas e a Lilla se acabava de rir quando eu dizia que era preciso fazer muita oração para a Rita não fazer outras viagens porque camisa escrota, já bastava aquela;
da época que todo mundo na escola ficava lindo nos seus casacos da GAP. cada qual tinha um de uma cor diferente. eram casacos idênticos mas cujas cores personalizavam cada aluno. o dela era branco neve. eu brincava dizendo que o meu era o casaco da GAP mais moderno e caro de todos. era exclusivo. ninguém tinha um igual porque uma tia minha tinha mandado trazer da Itália. era realmente moderno para a época: era branco transparente;
que eu sempre quis este óculo e ela trouxe de presente para mim de uma viagem pro exterior. só que chegando aqui ela percebeu o quanto a minha cabeça é grande e o óculos não entrou. Aí ela ficou com o óculos e deixou o relógio para mim;
do perfume que a Tia Anita mais gostava mas que a Lilla usava pouco porque ‘não queria ser uma cópia da mãe’;
que a Lilla achava que perfume de homem é para homem e perfume de mulher é para mulher e nunca entendeu porque o Tio Renè deu um perfume masculino quando ela fez justamente 15 anos;
da maleta que a gente usava para maquiar as Barbies. e, numa confraternização de final de ano do colégio, a gente brincou dela ir de Inácio e de Inácio ir de Lilla: ela me tacou pó-de-arroz pelo corpo todo e eu passei um negócio bem preto nela. a escola toda parou para ver a gente;
do dia que ela ficou pela primeira vez com o Conrado. a gente tava se arrumando no quarto dela antes de ir prá matinê e ela disse que zebra era o nosso animal da sorte. Então ela escolheu este tênis dizendo que seria o primeiro passo para futuros muitos beijos;
de quando ela descobriu que sagitário era o signo complementar dela;
que eu fui o escolhido para ser o padrinho de todos os 7 filhos que eles iam ter;
das tardes ensolaradas depois do almoço e antes do Kumon. ela estendia a canga e eu abria a cadeira;
de nós todos posando para a foto e o pau mulato atrás da gente. Eu fazendo trocadilho, Cecília dizendo que sempre quis ter um pau mulato atrás e a Rita emburrada dizendo que a gente era muito pornográfico.
daquele final de semana na casa de praia da tia da vizinha de prédio da Cecília. os seis na cama e a Rita emburrada não querendo dividir o mesmo quarto com os meninos porque ‘eles são meninos e eu só divido a cama com uma pessoa do sexo oposto: Caco.’
que, enquanto tocava ‘losing my religion’ e o sol nascia, ‘prometemos ficar juntos, prometemos que os futuros novos amigos não seriam melhores que os velhos, prometemos que nos veríamos pelo menos 1 vez por semana. prometemos também não ficar só na promessa.’