PRÓLOGO – ESCRITA AUTOMÁTICA
Não se assenta sobre alguma lógica cognitiva reinante. Essa escrita acontece, independente de quem a ouve, independente se se entende e, sobretudo, independente de quem fala. Ela impera e é ainda mais veloz que o tempo. Supersônica. Só faz seu sentido quando a coisa toda já tiver sido derramada. Eu pensei esse nome para o prólogo por acreditar que durante boa parte do espetáculo só o que há são palavras. Eles falam muito. Eles falam, dizendo ser para entender, mas falam sobretudo porque nomear resolve o problema. Nomear, durante um dado tempo, serve para segurar o pavor e dar sentido ao que nos escapa.
É curioso como o Odilon, no meio da primeira cena, falará já estar faz tempo esperando ouvir o silêncio entre eles. Eles não param. Os textos se substituem, as falas são cortadas. As contrabarras não estão ali por outro motivo. Elas existem até no meio de uma fala\ Praticada por quem fala\ E se cala para falar outra coisa.
A Cecília não sofreu para dividir tudo. Ela fez isso para manter a própria mente desocupada. Não foi pra ter trabalho, ela listou tudo em ordem, coisa a coisa, com precisão nos detalhes, justamente porque isso liberaria sua mente para que não pensasse no fato. Naquele fato, que eles parecem mesmo querer passar longe (mesmo quando já tão pertos).
A Cecília não sabe nada do surrealismo. Eles não estão pensando nisso. Eles estão, cada qual a sua maneira, tentando dissipar aquilo que talvez já saibam não vai ter jeito. É um esforço para acreditar que talvez falando sobre a coisa seja possível resolvê-la. Mas não. Como diz Eduardo Pavlovsky em sua peça PASO DE DOS: as palavras nos servem para esquecer, muitas vezes falamos para apagar aquilo que havia crescido entre nós.
Eles vão falar até o corpo ranger e pedir pelo silêncio, pelo sufocamento e confissão das entranhas. Não vai durar muito tempo esse falatório. A garganta vai secar, Nina, porque a sua poesia é curta é grossa, mas é longa e cheia de amor.
CENA UM – DESPEDIDA DO IDEAL
Não ia ser tão simples assim, gente. Eles talvez soubessem. Mas talvez, realmente, tenham tentado disfarçar o problema. Eles não acharam que bastaria se reunir e dividir tudo para, enfim, a dor acabar. Eles fizeram isso, mas a dor não cessou. A nossa peça começa com a divisão já feita. O sofrimento, o trabalho todo, toda a prosa para dividir coisa a coisa – isso tudo já passou. Tarefa cumprida. O problema do qual eles falam é outro. A questão que fica diz respeito ao depois. Porque se o que estava faltando era dividir os pertences, como pode eles estarem ainda assim? Ansiosos? Como ficar satisfeito com o real se o real mesmo resolvido ainda grita, ainda dói, aprisiona e atormenta a mente e o corpo?
Deve ser porque era mentira. Então o que se resolveu não foi o real, mas alguma outra coisa disfarçada dele. Aquilo que eles chamavam de real era na verdade apenas uma idealidade. Um possível real que eles talvez gostassem de achar ser possível. Mas a coisa toda da Lilla faliu tudo isso. De um dia pro outro. A Lilla, querendo eles ou não, empacotou o real dos amigos (o mesmo dela) e entregou todo o mistério (a vida é mais complexa do que sabíamos, mas eu não quero ficar aqui, não tenho estômago pra isso – é aquilo que talvez ela tivesse dito aos amigos). O real que partiu não era tão real assim. Ao chocar seu corpo contra o piso de concreto, naquela manhã de domingo, Lilla rachou também o sentido. Tá tudo assim meio confuso. Como se o mundo descobrisse seu íntimo. A sua real realidade.
Ora, então, se o ideal deles se despediu (foi despedaçado), o que fazer com isso que parece ser real (e não é?)? As perguntas se amontoam e a realidade se revela perturbadora e desconhecida. Nem sempre tudo nela germina, nem sempre tudo nela se resolve, nem tudo precisa de contraponto ou rima pra seguir. A coisa no real – a eles, quase inédito – flui e vai sem freio. Ponto final. Pode ficar chocado, pode ficar puto, descrente cego amargo e meio ao meio: o real não precisa de você para seguir seu traço. Ele é tiro preciso e você é apenas caminho.
Portanto, nesta primeira cena o que está em jogo é tudo isso. É essa percepção aguda da realidade. Faliram-se os sonhos, as aquarelas ficaram sob a chuva e escorreram deixando apenas marcas de traços e saudade de cada cor. Gente, eles estão falando pra aliviar o horror. Mas isso não vai vingar. O horror é maior. O dragão dentro de cada um sente fome e é preciso entretê-lo. Eles não sabem disso, mas daqui a pouco os gestos ficarão maiores (para dar conta do íntimo ferido e aumentado).
Pensem em tudo isso. Mais do que decorar as falas (isso vocês já sabem), ousem pensar no porquê de cada fala escrita. Por que minha personagem fala isso e depois aquilo? Isso começa a dar a vocês alguma espessura desses personagens. Na próxima semana encontraremos as indagações dentro de cada fala.
Esse texto que escrevi agora é só para desenhar a vocês o percurso da dramaturgia. De onde ela parte e sobre qual terreno se cria. Vamos firmar isso para poder erguer o adiante.
\\