A verdade é que a Lilla amava Harry Potter. Na madrugada do dia 15 de julho de 2011, uma sexta-feira, ela estava na Barra da Tijuca vendo a estreia do episódio final da série. Na bolsa, tinha levado chocolate e uma caixa imensa de lenços de papel. Saiu chorando e reclamando o fato do filme ter sido o menor de toda a série. No sábado, dia 16 de julho, ela acordou Andréia com um telefonema aproximadamente às 08h15. As amigas se encontraram depois do almoço e pedalaram sem parar até o início da noite. Lilla obrigou Andréia a jantar com ela. Naquela madrugada, com as pernas doloridas de felicidade, na virada do dia 16 para o 17, Letícia pediu licença às coisas de seu quarto e se jogou no mundo, literalmente.
Como não quis chamar muita atenção, ela apenas moveu, lenta, uma das duas cortinas de sua janela. Encostou-se contra a janela para dar uma última olhada em seu quarto. Viu Matisse, preso na parede em frente à cama. Viu sobre a cama o lençol dos cavalinhos agitados pela tentativa de um sono já tão distante. Ela pensou, vendo o mosaico de cores que seu quarto havia se transformado: minha tela tem movimento.
Depois, avançou à cama, pegando sobre ela uma caneta e um pequeno diário. Guardou-os dentro da gaveta da mesa de cabeceira. Desligou o interruptor da parede e acendeu o pequeno abajur com franjas. O quarto se aqueceu rapidamente. Ela foi em direção ao guarda-roupas, abriu a primeira gaveta e escolheu, lentamente, as cores de cada par de meias. Sentou-se na cama, colocou um par, depois outro e ainda outro mais. Pisou macia sobre o chão de madeira corrida e, agora, escorregando, deslizou novamente em direção à janela.
Recostou-se para ver o quarto, novamente, mas seu olhar foi tragado pelo móbile das pequenas libélulas de vidro, preso na quina superior da janela. Estão agitadas, constatou. E então fechou os olhos e soprou nelas um ventinho quente que as pudesse acalmar. Estava tão frio. As libélulas trocaram confidências ao som de ligeiros trincos e Letícia fez força com os dois braços para se sentar no parapeito. Abriu os olhos, pela última vez, apenas para conferir se a pelúcia ia ver realmente aquilo que ela estava pronta para realizar.
Feito isso, fechou os olhos também pela última vez. Subiu as pernas rumo ao parapeito, ergueu-se sem usar mão ou braço. O rosto cândido e frio esbarrou de leve nas libélulas informando à Lilla que ela estava no máximo daquilo que poderia se chamar de alto. Resmungou um sorriso leve quando uma das libélulas passou a asa fria pela ponta de seu nariz. Recuou-se para, enfim, voltar-se ao que restava da vida. Deu um passo com o pé esquerdo. Deu outro, em seguida, com o direito. Avançou escorregando, lentamente, dedo a dedo, mas,
o polegar do pé direito esbarrou num dos sete mini-cactos enfileirados no parapeito. E então o tempo parou. Lilla ouviu o potinho de barro batendo no mármore frio do parapeito. Ouviu as pequenas pedrinhas brancas rolarem janela abaixo. Tinha dado a sua largada. Vamos eu e o cacto. E o vasinho rolou, hesitante. Entre ir e não ir, entre partir e ficar. Mas a escolha já feita fez o tempo descongelar:
E então vieram os corpos, de Letícia e de seu mini-cacto, dançando o desejo de pertencimento, envoltos na efêmera ilusão do tempo - que é o vento –, para, enfim, se cravar no chão do mundo. Para outra vez, de outra forma, com outro princípio, germinar a vida.
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