Saudade
A Arte de se salvar – Ensinamentos judaicos sobre o limite do fim e da tristeza; Nilton Bonder
Saudades como falta de si mesmo
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ViKtor Frankel em seus estudos psicanalíticos sobre sobreviventes de campos de concentração faz uma importante relação entre os homens que se resignavam e aqueles que ainda “rapavam a barba”. Na situação-limite do extermínio, alguns prisioneiros acordavam de manhã cedo e, mesmo dispondo apenas de um caco de vidro, tratavam de barbear-se. Em vez de se entregarem a uma aparência que seria justificável socialmente devido às condições extremas a que estavam submetidos, esses indivíduos através deste simples ato ampliavam em muito sua chance de sobrevivência. Prestemos atenção na imensa complexidade deste comportamento: não é um ato de fuga da realidade, pois, se o fosse, certamente teria diminuído suas chances de sobrevivência. Estamos falando, portanto, de pessoas conscientes de sua situação, que encarando a degradação e a ameaça de forma realista se colocavam diante de um espelho para não permitir que o caos vigente no mundo externo conspurcasse a sua relação com a dimensão do Amor, da ordem e da estética. Se, para aqueles que vivem vidas mais confortáveis, o grande desafio é equilibrar o Amor com a Verdade, na crueza da realidade dos campos de concentração a grande prova era justamente o contrário, ou seja, temperar a Verdade com doses de Amor.
Estamos tratando aqui de pessoas que não abriram mão de si mesmas quando estavam de forma tão real diante da possibilidade da perda de si mesmas. Estas pessoas não estavam resistindo à entrega, como pareceria a muitos, mas, ao contrário, estavam verdadeiramente se entregando. A entrega é em si um ato de resistência e não uma forma de resignação, como vimos anteriormente. A entrega é ativa, nunca passiva. E só quem se entrega tem maiores chances de salvação. A entrega é um ato de generosidade para com a vida (um detalhe carinhoso, como o rapar da barba). A entrega se caracteriza por um ato de amor, a vida que está acima de qualquer coisa, com exceção da fé na própria vida.
Quando sentimos falta de algo ou quando temos saudades, experimentamos uma verdadeira e legítima falta de nós mesmos e saudades de nós mesmos. Acreditamos que a falta é do outro e a saudade é do outro, mas não é assim. A verdadeira saudade e a verdadeira falta do outro é um sentimento freqüente e constante que um indivíduo vive em relação a si mesmo. Trata-se da parte de si que não está incluída em si, este quinhão externo, este oitavo de morte-viva em nós.
Assim sendo, a saudade do outro que camufla a saudade de si mesmo é uma tentativa de o ego conter-se, de ser um universo infinito encerrado em si mesmo. A mãe, o amigo, o cachorro, a perna, o brinquedo, o sol ... tudo isto podemos perder com grande dor, mas tal dor serve apenas ao propósito de reforçar nosso próprio ego. A única forma de evitar-se esse beco sem saída, esse encontro marcado com o desespero, encontra-se na descoberta de que essa saudade não é de si, mas de uma parte de si que não está em nós. Não temer a morte e não fazê-la algo externo a nós é a maneira que temos de abraçar a dimensão da ordem e do Amor.Quem se barbearia no campo de concentração ama a vida e não excluí a morte da vida. Sua saudade de si mesmo não se encerra no seu ego, mas inclui também o quinhão de morte que é parte de si mesmo.
Uma das noções mais revolucionárias do chassidismo foi o reconhecimento de que não amamos o “outro” por ser um outro, mas porque nele há um pedaço de nós. Tal conceito põe por terra a tradicional expectativa de sermos altruístas e atingirmos níveis de solidariedade utópicos. A falta de si mesmo, a parte de nós que não está em nós, é um dado. A convivência com esta falta faz da ausência uma parte fundamental de nossa existência. Neste sentido, o que é vivido como perda pode chegar a ser vivido como resgate. A amada que parte ou o amigo que desaparece pode nos devolver a consciência da parte perdida de nós mesmos. Esta ausência resgata à vida a percepção de que é uma constante busca, em vez da tentativa de agregar-se posses e apegos na triste tarefa de administrar e preservar que nos imputamos.
Exacerbar a falta do outro pelo que o outro nos faz falta é não perceber a falta de nós mesmos; é representá-la externamente, tornando-a passível de controle ( e de descontrole). A dimensão sagrada do outro, seja representada por um pai, filha ou amigo, é uma manifestação da falta de nós mesmos, da parcela de nossa existência que nos é externa.
Esta visão pode parecer estranha, mas está presente na constante experiência de solidão que experimentamos na dimensão da Verdade. Nela não há mediação de mães, de amantes ou de amigos, e todos estes personagens e suas funções sagradas se desfazem ao cruzar-se o limiar de nossa profunda solidão. Na falta do outro se esconde o difícil sentimento de reconhecer a falta de si mesmo. E é nos momentos de passagem, tanto de crises durante a vida como na fronteira da morte, que experimentamos o máximo de nossa individualidade. Ficamos, assim, asfixiados neste absoluto estar só, e só nos resgatamos neste fragmento de nós no outro.
Uma parábola da tradição judaica conta sobre um aldeão que recebeu um chamado do rei. Ele e toda sua família ficaram muito assustados com a convocação. Em solidariedade, os moradores o acompanharam até a saída da pequena aldeia; seus familiares e amigos mais próximos seguiram com ele até a porta do palácio e, dali em diante, ele seguiu só, acompanhado apenas por seu mérito próprio. O rei e seu chamamento são simbólicos da morte. Os conhecidos acompanharam uma pessoa até o fim de sua vida (limites da aldeia); seus amigos mais próximos e familiares, até o cemitério (porta do palácio); mas, dali em diante, ele está só... acompanhado apenas pelo pedaço de si próprio que nunca tinha sido parte de si. Este “mérito”, este pedaço nosso nos outros, este “nós” mesmos no limiar de não mais existir é fundamental para preservarmos a esperança até nosso último instante. Esta é a única bagagem que nos é permitido levar para além da dimensão da vida.