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terça-feira, 29 de março de 2011

O Dia do Enterro – Parte II

Diogo Liberano

 

O corpo dela chegou sem pestanejar ao destino previsto. Os parentes então se foram, os curiosos se foram, os carros voltaram a soltar fumaça pelo escapamento e os coveiros se reuniram na cafeteria para beber o café da manhã e lavar as mãos. Não houve pássaro que fez alvoroço nem vento a mover alguma decisão. Eles permaneceram cravados no chão feito natureza morta destituída da possibilidade de render fruto. Ali cravados, eles faziam todo o sentido que até então não pareciam deter consigo.

Fazia um frio descomunal do lado de dentro. Era difícil dobrar a espinha. A moça do depois foi a primeira, com a face alva e avermelhada ela se virou contra o corpo da amiga e respirou lenta esvaziando de si própria aquela ira imensa que a afogava. O cara do celular desceu o caminho de pedras direto ao banco. E apesar de todo aquele movimento, a garota do cambalear e aquela do silêncio aproximaram-se mais do solo como se não acreditassem na morte como sendo só aquilo: um lacrar-se por completo no interior do mundo.

E enquanto isso, o cara do café se mantia erguido e entretido nela ali ainda irascível. Entretido no outro que descera o caminho e entretido também nas duas ali ao chão lançadas. É sujo, ele disse, levanta, gente, mas elas não ouviram nada. Desaprendemos a ouvir, ele talvez tenha pensado. Foi informação demais, ele talvez tenha pensado. Ou não. Porque ela partiu irada sem olhar para trás. Ela desceu o caminho e sentou-se ao lado do cara do celular que no banco parecia outro, visto que o sol revelava as coisas como elas pareciam ser; tudo agora era bruto e rouco. A pele esburacada e o olho remelado. Eles ficaram ali um longo tempo se falando mas sem a exigência do se ouvir. Apenas para durar no segundo e seguir. Feito essa rima desenfreada.

Então foram os dois lentamente mirando a capela. Ela respirava lenta satisfeita pelo dever cumprido. Os dois no banco vendo a fresta pela qual o beija flor escapulira. E no entanto, tudo ali dentro ainda suava e tremia, tudo ainda ali agindo e transformando o cômodo numa caixa de vidro repleta de agonia. Eu quero ir embora. Ela disse. Vamos tomar café juntos. Ele tentou dizer.

Porque vindo com um copo plástico na mão ele cruzou a frente dos amigos e os fez calar. Atrás dele as duas meio que se abraçando meio que andando meio que tentando selar o medo e a morte e, quem sabe, por que não?, as duas meio que tentando resolver tudo aquilo que não teria solução. Elas pararam próximas ao banco. E frente a este, erguido, o cara do celular mantinha um braço esticado na tentativa de segurar o outro que enfim já tinha ido rumo à cafeteria. Ele ali com o braço esticado como se chamasse um ônibus que não viria. Ele sentou-se novamente porque o outro voltou com um copo plástico na mão. Eu nem vi de onde esse copo surgiu. Mas se fosse mentira pelo menos serviu para entreter a falta de sentido daqueles primeiros passos que todos tentavam dar.

Do lado de fora, quem os visse assim, pensaria, do quê estão brincando? Que forma confusa é essa de se relacionar que um não olha ao outro e que um outro não olha a um sequer? O cara do celular perguntou se a gente está esperando a mãe dela voltar para ficar ainda mais constrangido? A gente pode ir embora ou alguém ainda tá querendo viver mais um pouco tudo isso?

Ele jogou o copo no caixote de areia ao lado do banco e disse vocês perceberam que a tia Anita não fala que ela se matou? Nos olhares desencontrantes o desencontro ainda era o que poderia haver de mais reconfortante. Vamos. Não se moveram. Vamos, disse o cara do celular. Para onde. A moça do depois sempre no flagrante do que daquilo ali poderia surgir. Vamos tomar café juntos. Ele já bebeu café demais. Vamos beber Stella. Obrigado. Ficar bêbados. Rir e chorar. Que ela adora. A Lilla adora Stella. Ela adora.

Do lado oposto a eles uma brisa moveu a copa da árvore sobre a cova. Ela gosta de Stella, pensaram juntos, talvez tenham pensado, é difícil dizer o que eles pensavam nessa hora improvável. Acho por vezes que ela ainda não existiu por completo. Essa hora da qual tanto falamos e que não cabe no relógio, nem num peito, nem num terreno vasto e vazio. É que eles não tiveram força, era visível, eles não tiveram força para ser nada exceto a ignorância de quem ama. Não saber. Para onde ir. Nem nada. Apenas vagar.

Ele então voltou à cafeteria. O cara do café. Ele voltou. E nisso moveram-se os outros. Como se estivessem de fato costurados pelo absurdo que reinava sobre todos. Costura em lã fina capaz de serrar. O peito estrangulado. A vontade de gritar. Eu queria ficar junto. Ele disse meio sem saber a quem. Eu queria não ter que pedir porque sou sempre eu quem pede. Mas eu queria ficar junto com vocês. Não foi por isso que ela se foi? Porque não estávamos lá pra segurar seu impulso. Eu estava. Eu queria ficar junto com vocês, pra não criar motivo pra voltarmos a esse cemitério tão cedo. É só que vai ser duro demais sair daqui e voltar ao dia-a-dia.

Dentro da capela um vento investia contra o vidro da janela. Como se de dentro algo quisesse sair e estivesse pedindo me deixa partir. Ela então foi direta. Virou-se e adentrou o espaço, arregaçando as portas e atravessando para dentro das paredes as janelas. Ela saiu cambaleante. Da porta o rosto clamando alguma exatidão ou porto capaz de a firmar. Mas não tem mais nada aqui. Ela os falou confundida. Ela se foi. Não tá lá embaixo porque ela foi voando. Da janela. Enquanto a gente aqui acha que ela tá ali dentro ela ri dentro daquela caixa enquanto a gente acha que ficar aqui vai trazer ela de volta à vida. Ela não vai mais voltar.

Eu só queria que fosse ontem de novo. Disse um dos três ali sentados. Ela da porta da capela olhou como se em busca de um culpado por ter dito aquilo tão ousado. O que sobrara de ontem é só o hoje. Não dá para voltar. Eu disse a ela que se fosse para viver assim que era melhor não viver. E se eu dissesse que podia? E se eu tivesse dito que sim que ela poderia fazer o que quisesse e se eu tivesse a convencido de que tudo era sim possível, será que mesmo assim ela se teria ido de mim?

Ele estagnado. De nós, corrigiu. Ele da cafeteria recém-chegado. O corpo suando seco enquanto a garota do silêncio morria por dentro gritando e pedindo sem remendo alguém me tira de mim e me faz amar esse buraco! Ele inteiro a pegou de si e a abraçou como quem é capaz de se ferir para aliviar um amigo. Como quem pede despeja em mim essa culpa sua que ela é minha também se isso for lhe aliviar. Abraçaram-se. Beijaram-se. E choraram juntos.

Até que pela porta da capela viesse o beija-flor enlouquecido. No entanto, porém, neste agora, ele vinha preciso. Sem grito nem asas para além dos segundos, ele veio como se tivesse completado seu percurso. Uns viram. Outros fingiram ver. Outros eu não sei dizer. É só que era informação demais para fazer nascer uma manhã. Tinha coisa demais acontecendo. Tinha culpa demais brotando feito gota no orvalho. Feito lágrima, tinha muito verbo querendo ser atirado.

É que fora, eles ali desunidos, eram aos poucos atados de volta por essa ideia torta da Lilla. Ideia que dentre em pouco completaria já seu meio dia de vida. De fora, reluzindo quinas, eles só queriam limpar o vazio para se livrar daquela ânsia, daquela sensação que não tem nome mas que consome e mastiga. Eles de si sendo desabitados, batendo cabeças uns contra os outros e se reconhecendo incapazes, idiotizados.

Uma garota pássaro acaba de chegar no paraíso. Ela disse. É mesmo para lá que eu imaginava que ela pudesse ter ido. Eu não sei dizer quem disse o quê, mas era tudo fruto daquele inferno ali delicado e íntimo. No orvalho, a manhã vinha simples e dilacerante. Eu quero ir embora daqui. Ela disse novamente. Eu tô de carro. Eu vou de táxi. Espera. Eu não quero. Vamos juntos. Eu quero ficar só. Você quer sofrer só. Eu quero. Não faz sentido. Não faz. Ficar só. Estamos sós. Juntos. Não. Vamos todos. Não. Eu posso agora. Eu também. Eu também. Eu também. Eu não. Sem um não vai dar. Quem sabe então se você gritar mais alto ela não te escuta e resolve voltar pra completar a nossa excursão até à cafeteria?

Eles ouviram algum vento passando mudo como se batesse a ficha. Dentro, a terra abraçava a cova e ela no caixão ia se esquentando e ainda sorria. Talvez um bicho estranho e pequeno tenha roído uma pequena fissura lateral no caixão de mogno escurecido. Talvez outro inda mais fantástico tenha tocado uma melodia de farpas e a acordado de vez. Ela talvez tenha tomado um pouco de veneno para voltar a viver. Ela talvez tenha ficado pequena ante a imensidão daquele caixão. Talvez ela tenha atravessado a fissura e ido brincar direto no primeiro rio a cortar toda aquela terra.

Talvez o pavor desta madrugada tenha me feito imaginar coisa demais. Talvez eles desaprenderam a pensar. Mas disseram, sem dúvida, do cansaço, do medo, do ficar juntos, da noite, do ficar sozinho, da amiga. Dessa palavra imensa que ainda agora não pára de crescer: amiga. Disseram do impossível. Disseram que nada havia sido tão horrível quanto aquilo. Eles riram. Eles sim foram inverossímeis. É só que uma dor desse tamanho nunca é real. Uma dor dessa imensidão só pode clamar por delírio. Ali, onde as lágrimas já findaram e o corpo ainda baila descontrolado e desconhecido.

Ele entrou no carro. Com a certeza de quem não sabe se no segundo adiante vai querer respirar. O outro recuando em direção à cafeteria disse algo como a gente se encontra logo logo. Ele ligou o carro. Ligou o ar-condicionado. No bolso o celular vibrando e na vista as amigas se despedindo não como quem se despede mas como quem precisa de uma ação bem concreta para não despedaçar. As duas garotas se despedindo para enfim entrarem juntas e abraçadas no banco traseiro do carro.

A moça do depois acenou um adeus vendo o carro alcançando a estrada de pedras. O cara do café já havia partido quando ela se sentou no mesmo banco. Ela como se houvesse esquecido o que viria depois. Lacrada dentro de um cachecol que a afligia a pele e o respirar. Ela tirou o pano e – não se sabe porquê – o lançou adiante como fosse um dado capaz de lhe dizer quantos passos dar.

E no ar, movendo-se milimetricamente impreciso, ela leu através do pano: haverás de bailar frenética como um dragão à procura de abrigo. Mas era só um lenço. Disse a si mesma, isso é só um lenço. E nos olhos, retido à retina, o movimento do corpo-lenço em meio ao vento se clareava e escondia. É só um lenço, é só um lenço, ela repetia. Não como quem teme esquecer, mas como quem tão somente duvida.