Diogo Liberano
O corpo dela chegou antes de todo mundo. Foi rapidamente transportado para o hospital e de lá para a capela. O cemitério ficava no alto de um morro. Não era bem um morro, mas sem dúvida algum lugar sobre o qual se estava mais perto do céu e mais distante dos prédios. Dali se podia ver a cidade sobre a qual a noite caia inteira e lentamente. Assim como as estrelas, a lua naquela noite também havia se escondido, apavorada. Um carro subiu a encosta de pedra flagrando com seu farol a brisa ventando de leve o gramado esverdeado dos canteiros. Eram três pequenas capelas. A dela estava acessa e solitária. Ela ali no centro da sala aguardando os primeiros cumprimentos, enquanto através de duas grandes janelas vidraçadas se via o carro estacionando logo adiante.
Fazia um frio descomunal. O sol sumira tão logo a viu se lançar do alto de seu prédio. A natureza, então, comovida, passou o dia inteiro meio tímida, em luto profundo. Até que o carro parou, quase sem fazer barulho. Dele desceram dois amigos e uma amiga, escorada num deles. Caminharam até a frente da capela e tão logo frente a ela se puseram, um dos amigos de imediato se retirou, indo em direção a sabe-se lá onde. Sozinhos, os outros dois, ali, ficaram imóveis. Mas não houve nada. Exceto o pranto, descendo inteiro e sem freio pela vista da amiga do lado de fora, cega de dor.
E enquanto isso, o outro que dali havia se retirado encontrou mais adiante uma cafeteria envelhecida cheirando a café queimado. Ele pediu um café, colocando sobre o balcão sujo a óleo algumas moedas e se sentando, apaziguado. Ele bebeu o café, pensou, pensou, não havia nada mais a ser feito. Ele ouviu o som que saia do televisor e respirou fundo. Sabia que a noite estava apenas começando.
Então foram os dois lentamente entrando na capela. Como se lentos pudessem sugerir à amiga restar tempo para dar-lhes um susto e se erguer. Eles pararam a cerca de um metro dela e ali ficaram por alguns segundos; tempo suficiente para que a amiga se retirasse bruscamente e deixasse o amigo ali, querendo ser forte para mudar o curso das coisas. Ele permaneceu parado, entretido na amiga escondida sob flores amareladas e doentias. Medindo quantos não conseguiriam estar ali para um último abraço. Apavorado e destemido, ele então avançou até ela e beijou suas mãos, saindo da capela com medo da própria vida e de tudo aquilo que ainda não conseguia compreender.
Com um copo plástico na mão, ele cruzou a pista de pedras e sobre o gramado ficou durante minutos, a contemplar o céu e aquele silêncio imenso que afagava todas as coisas. Bebeu outro gole. Sentiu o café lhe acariciando o interior. Quis por um minuto morrer. Quis no minuto seguinte aproveitar aquele instante único de sua vida e sofrer, com intensidade, aquele instante único recém-passado no qual ele perdera sua amiga. E voltou, entretido na busca por uma lixeira na qual jogar o copo plástico.
Do lado de fora, a amiga sobre o banco apenas chorava. Ele se aproximou, sentou-se ao seu lado, incapaz de dizer algo. Dentro talvez soubesse, não havia conforto possível para aquele dia. E veio então o outro e sentaram-se os três ali próximos e apertados. E o tempo passou. E junto à neblina, mais pessoas foram chegando, enquanto os amigos viam nelas seu choro se multiplicando. Não era dor única e pessoal, era a dor do mundo pedindo licença para acontecer. Era o mundo doendo querendo gritar e tremer. Era o céu querendo quedar depois de ter sido atravessado por ela feito um pássaro. A noite se despedindo e eles sentados, pensando sobre o que poderiam ter feito, sobre como poderiam tê-la impedido, eles pensando na surpresa, no susto, no seu suicídio.
Até que viesse a mãe dela. Desamparada. Chorando não como quem chora, mas como quem pede – lágrima por lágrima – para morrer junto com a filha, como quem implora para ser levada, como quem clama a alguém que permita a ela doar sua própria vida para a filha. O choro da mãe feito desespero explícito da alma, feito sinfonia aguda e capaz de estourar ouvidos dos mais sensíveis. A mãe chegou trazendo consigo a certeza de que a dor seria desde já uma eternidade possível.
Ele jogou o copo no caixote de areia ao lado do banco. Ele se surpreendeu de leve com a quantidade de cigarros que ali haviam sido apagados. Ele passou um braço por trás da amiga e a confortou, desconfortável. Juntos ali de longe, vendo o horror da mãe sendo socorrida por seu filho que sobrara. No bolso da calça de um dos amigos o telefone celular vibrou. Ele atendeu se erguendo e indo em direção ao local onde estacionara seu carro. Foi falando leve e calmo, dizendo que viesse, que viesse porque ele a esperaria, que viesse porque o enterro seria pela manhã, porque daria tempo ao menos de vê-la antes de partir, que viesse, enfim, que ela poderia vir. E sentou-se de volta ao banco.
Do lado oposto a eles, cruzando o jardim gramado e o chão de pedras, ela veio cambaleante em explícito desespero. Ela trocando os passos e soluçando, havia sido pega de surpresa pela notícia, viera de outra cidade e no entanto conseguira. Ali estava, abraçando os amigos tão por inteiro que se poderia supor que ela tivesse mais braços do que de fato tinha. Abraçou-os a fim de sentir calor e disse ser bom estar ali, apesar de tudo, que era bom tê-los de novo ali reunidos. E entrou na capela, sem hesitar.
Ele voltou à cafeteria. Ela lá fora voltou a chorar. Ele que desligara novamente o celular sentou-se ao seu lado e se pôs a conversar. Porque ela não conseguia não perceber tudo que ao seu redor gritava de dor. Ela viu a dor da mãe. A perdição do pai. Ela ali vendo o irmão da amiga tentando ser forte. Ela vendo sua amiga se retirar do mundo, sem pedir licença. Ela que esteve na noite anterior ao lado da amiga, mas que agora, no entanto, ainda que ao seu lado se sentia tão só. Eles ali falando como se falar pudesse resolver o instante. E ele lá pedindo outro café. Ele inventando pretexto para resistir.
Dentro da capela, a amiga recém-chegada era abraçada pela mãe de sua amiga. Era revirada e questionada, mexida por inteiro, como se tivesse em si, em seu corpo e face lacrimejantes, alguma resposta. Mas nela havia apenas o silêncio. Estampado. Ninguém poderia supor palavra. Das coisas ao redor, das pessoas, dos parentes, só o que havia era a suspensão. Nela, o silêncio como resposta ao vasculhar incessante da mãe em busca de um motivo capaz de trocar a escolha da filha por um acidente qualquer.
Ela saiu da capela cambaleante. Mas caminhando em direção aos amigos percebeu como nunca se está destruído por completo. Não conseguia compreender como podia um horror ser tão imenso. Não conseguia compreender como certas coisas podem de fato nascer no meio do dia-a-dia. Ela no banco já se sentando com os dois amigos e ele que de lá vinha caminhando, com outro café nas mãos, indo direto ao interior do quarto.
Da porta o rosto saltando o caixão de mogno escurecido. Avançou lento se surpreendendo a cada passo com a própria saudade que crescia dentro de si feito um bicho faminto. Caminhou lento querendo se possível pular por sobre ela a fim de impedir que ela se fosse, para impedir que o tempo passasse ou, ao menos – ele pedia dentro de si – para que o tempo fosse generoso, que fosse a despedindo do mundo em câmera lenta. Ele chegou ao seu lado. O olhar fixo e marejado no queixo da amiga semi-cicatrizado, com escoriações a mostra, com aquela maquiagem que a fazia parecer mais cheia do que realmente estava. Ele ali contemplando o rosto dela, a sua ousadia, a sua dor, a sua incompreensão, ele olhando a noite naquela estrela adormecida, ainda mais linda e a cada segundo mais fria. Esticou as mãos e entre elas comprimiu as dela. Ele ali tentando lhe dar vida. Ele vendo dela a poesia que ele nunca acreditou acontecendo plenamente, bailando delirante dentro do ar preso na atmosfera.
Os três amigos ali no banco sentados. Ele saiu da capela e vendo-os ali de imediato se pôs a chorar, como numa declaração de amor dada à importância do encontro, ao amor imenso que nutriam entre si. Ele se sentou de frente ao banco, no chão. E ficaram ali, falando baixo, resmugando do frio, do horror, rindo em sorrisos velados. Eram tão jovens, tão propensos às maravilhas da vida. Tinham sido pegos de surpresa. Era isso. No bolso o celular vibrou. Ele se ergueu em direção ao estacionamento, chegando a tempo de segurá-la. Ela que sempre chegara no depois chegou depois, mas foi a tempo.
Abraçaram-se. Beijaram-se. Choraram. Entraram juntos na capela e, um a um, dela se aproximaram e disseram aquelas coisas todas sobre amor e eternidade. Os amigos ao redor do caixão querendo criar raíz. Putos com a ousadia dela. Cheirando a luto, de mãos tristes clamando por quentura. Eles ao redor dela tatuavam em si próprios o maior buraco até então de sua existência. Eles ali como em tantos outros momentos.
E então pela porta entrou voando um beija-flor enlouquecido. Suas asas, frenéticas, trepidavam enquanto ele se chocava contra o vidro transparente das janelas. Ele ali batendo-se sem fim contra elas criando um réquiem de notas agudas e arranhões, de riscos e investidas sem fim rumo à transparência daquela noite. Era ela querendo partir. Pensou um deles. Pensaram, talvez, todos eles. Ou não. Talvez não fosse ela pedindo licença para completar a sua ida, o seu salto. Talvez não fosse ela. Mas abriram a janela.
E lá fora a luz da manhã trouxe consigo o irmão dela, entrando na capela carregado de bichos imensos e pequenos, com pêlos curtos e aparados, com crinas dentes expostos e rabos, de cores estranhas e marcados. Ele com quase uma pelúcia para cada ano de vida da irmã, dispondo sob o caixão a imagem que dela talvez ele fosse gostar de conservar. E então pela porta da capela entrou um senhor, entraram familiares e amigos, entraram todos os silêncios do mundo e uma profusão de gargantas secas molhadas a vácuo. O senhor de cabelos brancos disse alguma coisa em nome de Deus, o pai disse alguma coisa, a mãe falou nada. Houve homenagens, palavras vãs e o movimento, do pai junto ao filho carregando o caixão da capela até a pista de pedra e desta até a cova, aberta numa encosta de gramas lacrimejantes.
No orvalho, refletia-se uma manhã triste e resignada. Havia uma árvore sobre a cova. Houve um instante em que só se moveram as lágrimas. Quando a tampa do caixão foi colocada a mãe se lançou ao chão sendo erguida, em vão, pois continua ali cravada até hoje. E lento, lentamente, o caixão foi ganhando o mundo para dentro, beijando a terra e se despedindo em silêncio.
Eles viram a terra ganhando a cova novamente, viram a pá nivelando o terreno, eles viram os parentes indo embora, a mãe sendo carregada, o pai perdido sobre as próprias pernas e, de longe, através da janela da capela, viram as pelúcias ocupando o lugar da existência da amiga, que ali se terminava. Perdoem-me, mas eu não saberia narrar o que aconteceu a seguir.