Olá para todos,
peço desculpas por invadir este espaço, que sei ser um espaço tão sensível e tão íntimo de todos vocês, que compartilham por aqui as mais variadas espécies de troca: intelectual, poética e afetiva, se é que é possível separá-las assim tão facilmente.
Se demorei tanto para fazer aqui minha primeira postagem, foi sem dúvida mais por cautela do que por falta de vontade. Na verdade, tenho lido tantas coisas que me fazem lembrar de vocês, e várias vezes tive vontade de transcrevê-las inteiras por aqui. Preferi, porém, antes disso, habitar este blog como uma espécie de fantasma, que vocês sabiam que rondava por aqui, mas não sabiam exatamente onde, nem quando, nem como.
Depois de fuxicar até não poder mais, decidi que estava na hora de dar as caras e de me fazer enfim, presente. Sinto às vezes me invadindo um espaço tão próprio de vocês, que não posso me permitir estar preservado, furtado em um olhar distanciado e alheio, e me coloco a partir de agora (se vocês me permitirem, é claro) aberto ao contato e a troca, colocando-me como elemento de agregação que não mais estará neste espaço apenas de forma contemplativa, mas também propositiva.
Não seria possível, nem recomendável, eu de uma vez transcrever ou falar de tudo que me faz lembrar de vocês, mas gostaria de compartilhar algo que me foi suscitado através da postagem da Flávia, sobre uma conversa com a Marília e com a Nina no final do último ensaio, que me levou a escrever sobre isso.
Vocês falavam sobre o mundo de hoje em dia, e sobre como era ruim atestar que vivemos em um mundo ainda marcado pelas injustiças, pelas desigualdades, pela falta de afeto e sensibilidade geral que preside a maioria das vidas humanas e como era pior ainda apenas reclamar sobre aquilo, falar mal, sem fazer nada a respeito, ou impossibilitados de fazer algo a respeito (o que fazer?)
O que penso é que uma forte característica desse mundo que vivemos é a proliferação de imagens em uma escala absurda. Os meios de comunicação diariamente noticiam guerras e exibem as fotos dos corpos ensaguentados e empilhados na primeira página. Mais recentemente, acompanhamos a espetacularização feita em cima do massacre de Realengo. Reconstituições da cena, depoimentos de pais inconformados, heroicização do policial que matou o tal assassino, fotos de sangue das crianças, acompanhamento dos enterros, enfim, todos os elementos para a constituição de um drama dos bons.
Apenas com um detalhe: a falta de sensibilidade. A falta do lado humano rege a conduta geral de uma sociedade que já não sabe mais ser atravessada. Muitas pessoas discutindo, lamentando, raivosas, mas com exceção dos familiares das vítimas e dos colegas que presenciaram o fato, nenhuma pessoa, nem entrevistadores, nem reporteres, nem governador, prefeito ou algum amigo que conheci foram capazes de chorar. Sim, chorar. Sofrer realmente, ser tocado, ser atravessado parece que não é tarefa simples nos tempos em que vivemos. A proliferação de imagens está associada a banalidade da morte. A desgraça, mostrada diariamente nos jornais e televisores, não mais nos coloca na posição de sensibilidade, atravessamento e simplesmente passamos e escapamos imunes.
Para vocês, a tarefa é outra. O lugar do teatro não é o lugar da mídia. Em lugar da espetacularização, a sensibilidade. O teatro pode não ser mais o lugar da catarse, mas é o lugar que coloca corpos em ação, onde o espectador e o ator se unem por um momento no sentido ritual, onde ambos comungam de uma certa sensibilidade e onde a experiência direta é a mais forte tradução de um acontecimento vivo.
Vocês não estão distanciados do que está acontecendo aí fora. Se existe alguma coisa que vocês podem fazer para melhorar este mundo, e eu acredito que o teatro tem esse poder, é simplesmente fazer jus ao nome deste blog: atravessar. A partir do momento em que assumem isto, que o lugar do teatro é o lugar do atravessamento, vocês estão fazendo a parte de vocês.
À essência do distanciamento midiático o teatro contrapõe o sentido de comunidade: "são corpos vivos que se dirigem a outros corpos reunidos num mesmo espaço. Parece que só isso é suficiente para fazer do teatro o vetor de uma sensibilidade radicalmente diferente da situação dos indivíduos sentados em frente de um televisor ou dos espectadores de cinema, sentados diante de sombras projetadas." A partir do momento em que recusa o distanciamento, o teatro chama e convoca, ele - e talvez como nenhuma outra expressão artística - tem o poder do agenciamento.
Vivemos em um mundo tão interconectado quanto dividido e nesse mundo, o teatro tem um papel, o de romper esta divisão e aproximar as pessoas de si mesmas.
Um beijo para todos vocês.