Não li, claro, nunca. Hoje perguntei das historias de prisão do meu avô pra ela. Ele foi preso político na Ditadura Vargas, anos 50, perto do nascimento da minha mãe.
Li coisas que nunca imaginei, e como o Fred, eu tô chorando.
Meu avô se chamava Octávio Bandeira, era pernambucano, marinheiro, me contava historias sobre as baleias do mar, que elas eram boas, e os tubarões maus.
quero dividir uns fragmentos
Agora vou contar como foi a minha vida de casada com Bandeira. Eu conheci o Bandeira no dia do enterro de papai.
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Mas nem cheguei a falar com ele. O tempo passou e,certa vez, numa festa na casa da Rosa, eu fui apresentada a ele. Aí ele já era sargento e eu topei namorá-lo mesmo contra a vontade de mamãe. “Gente de farda não presta”, ela dizia, e fez de tudo para o namoro não continuar mas com Bandeira ninguém podia e, apesar do gênio forte da mamãe, ele venceu. Namoramos mais ou menos uns 4 meses, após o que ele achou melhor noivarmos. Foi escolhido o dia 14 de setembro, dia do aniversário dele. Mamãe não sabia, porque era contra o namoro.No dia marcado preparamos um jantar para comemorarmos a data. À noite ele chegou com Narduccio, irmão do Mario e, na hora da sobremesa, Narduccio levantou-se e disse que estava ali representando o pai de Bandeira para me pedir em noivado. Mamãe foi apanhada de surpresa e disse:”Se vocês se gostam, não tenho nada contra”.
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Depois disso, à noite ele vinha namorar mas só falava em comunismo, em “mais valia” e “menos valia”, que até hoje não sei o que isso quer dizer. Beijinhos e abracinhos nada, mas nada mesmo. Tão diferente do Paulo, que eu havia namorado tempos atrás. Como eu gostava dos beijos do Paulo, tinham gosto de castanhas assadas na lareira, como as que eu comi na Itália. Mas Paulo era uma pessoa estranha, sem termos nenhuma rusga ele sumia e desaparecia meses. Quando aparecia era como se tivesse ido embora na véspera. Fez isso umas 3 vezes até que um dia sumiu de vez.
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Após o casamento nós dois iríamos morar no quarto do andar de baixo de Paula Matos onde Haydée e Mário moravam (eles passariam para o andar de cima). Na véspera do casamento, ele trouxe as coisas dele numa malinha de mão e um rádio grande. Era tudo. Quando fui arrumar as coisas dele, era aquele vazio. Um mês depois de casada, comprei 6 camisas sociais brancas, 6 cuecas, 6 camisetas de malha, 6 pares de meias brancas por causa da farda, lenços etc. Aí passei a levar as camisas sociais para a lavanderia porque antes ele não tinha como trocar, era lavar, passar e vestir de novo a mesma.
Não me casei na Igreja porque Bandeira tinha idéias comunistas e não gostava de igrejas. Mas , se eu tivesse insistido,acho que ele teria concordado. Não insisti porque eu também já me achava um pouco velha para isso, já tinha 31 anos, e preferi que a cerimônia fosse em casa, mas teve padre e um altar improvisado.
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Estava casada com Bandeira e, a meu modo era feliz. Ele continuava cada vez mais comunista e fazendo das dele. Eu engravidei,acho que na lua de mel.
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Bandeira foi mandado para Ladário, Mato Grosso, onde deveria ficar 2 anos. Fizeram isso para ver se ele abandonava o comunismo.
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Dias depois,horas depois de Bandeira ter ido para a Base, voltou de macacão de operário, escoltado por dois policiais.Foram logo me dizendo :”Ele está incomunicável”. mas não me explicavam nada e nem ele podia falar comigo. Abriram meu guarda-roupa e disseram:” Vejam isto! Quanta roupa para a mulher de um comunista!” Reviraram o quarto todo, até as bainhas dos meus vestidos eles desmancharam procurando provas. Abriram minhas bolsas, despejaram tudo no chão, pegaram o Bandeira e foram para a Base.
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O Comandante me disse: ”Isto que vou lhe contar é segredo mas vou lhe dizer porque estou com pena da senhora. Amanhã, no avião das 6.00 hs da manhã ele vai ser levado para o Rio. A senhora vai até o aeroporto e vê ele de longe porque ele está incomunicável”. Agradeci e fui me encontrar com Agripino. No dia seguinte,às 6.00hs, lá estava eu no aeroporto. Vi quando ele chegou com o mesmo macacão da véspera, barba por fazer e branco feito uma cera. Perguntei se tinha tomado café e ele disse que não. Ao lado tinha uma lanchonete, pedi uma xícara de café e dei para ele. Ele estava tão nervoso, tremia tanto que não conseguiu levar a xícara à boca. Logo botaram ele no avião e foram embora.
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voltei para minha casa em Paula Matos. Lá chegando rasguei tudo que foi papel que pudesse comprometer o Bandeira e depois, exausta que estava, dormi.
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Queria que eu convencesse o Bandeira a irmos passar 2 anos nos Estados Unidos, país mal visto pelos comunistas por ser capitalista, com tudo pago durante o tempo que ficássemos lá e quando voltássemos, Bandeira teria promoção de oficial.
Para falar com Bandeira ,teria que ir naquela noite na PM da Tijuca. Fui. Lá em casa todo mundo ficou apavorado. Quando cheguei no quartel me levaram para uma sala grande com uma mesa e trouxeram o Bandeira. Ele ainda estava com aquele macacão sujo, fedido, a barba por fazer há dias, olhos de louco e disse: “O que você quer aqui? Fala logo e vai embora porque desde o dia em que fui preso, não me deixaram dormir um minuto, não agüento mais”. Transmiti a proposta do Brochado e quase fui agredida. Ele disse:”Não sou traidor de meus amigos, some da minha frente”. Aí já eram 2.00 da manhã e eu pensando como iria para casa.
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Dentro da maleta ele achou um aparelho de fazer barba e disse: “Infelizmente isso eu não posso levar porque ele pode se matar”. Eu respondi: ”Bandeira não é homem de fazer isso”. Ele falou:”A senhora não sabe o que é um homem preso nas condições dele; é capaz de tudo” e me devolveu o barbeador.
Voltei para casa e, dias depois,ele telefonou para eu voltar lá e conversou um bocado comigo. Isso aconteceu muitas vezes. Uma vez, na véspera de eu ir lá, tinha havido uma festa de aniversário de criança e levei um pedaço de bolo para ele entregar ao Bandeira. O bolo estava lindo, com uma camada grossa de açúcar e enfeitado. Ele pediu um pedaço e eu disse:”Sirva-se à vontade”.Acho que era para ver se tinha alguma coisa escondida nele. Após várias idas e vindas, certa vez ele estava acompanhado de um militar de alta patente e após conversarem muito, disseram:”É um caso típico de inocente útil”. Me dispensaram e nunca mais fui chamada.
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Um dia, o Enéas, marinheiro amigo do Bandeira, por algo que ele fez, foi colocado num cubículo, em pé, dia e noite, com um pingo d’água caindo na cabeça dele. Então, os sargentos, sempre comandados pelo Bandeira,descobriram e fizeram uma baita confusão. As esposas ficaram proibidas de falar com os maridos. Nós só os víamos ao longe, numa janela que eles ficavam para nos ver.
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Uma noite vi ele entrar às carreiras em casa, pegar uma mala e jogar umas roupas dentro. Perguntei o que estava acontecendo e ele disse: “Soube através de uma fonte fidedigna que vou ser preso de novo. Isso eu não agüento outra vez, vou fugir e depois te escrevo dizendo para onde vou”. Dias depois recebi uma carta de “Antonio Soares”. Era ele com outro nome. Soube que estava em Tatuapé, São Paulo.