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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Bobagens atravessadas

Estou comendo chocolate, passei o dia desejando qualquer cacau. Agora à noite consegui. Estou atravessada com três barras de chocolate "diamante negro". Estou atravessada pelo chocolate. Bobagem? Sim. Mas tirou-me do eixo. Porque um desejo não concretizado gera tanta angústia? Pensei em chocolate, e lembrei da infância. Nos doces que não gostava. Nunca me atravessou qualquer doce que contivesse amendoim, até hoje o nego. Mas isso são coisas superficiais. Para mim, importâncias. Que bobagem!
Ontem estava trabalhando no CCBB, lugar com uma arquitetura linda e incrível. Em trinta minutos no térreo passam, por mim, cerca de 100 pessoas, no mínimo. Nenhuma delas ( ou raras delas) se relacionam com o lugar. Já sabem a função dele. Não há surpresas, nem atravessamentos. Vão todos ali para ações especificas. Ou passar a tarde, ou tomar um café. Mas andam, passam, não sentem. Ou não demonstram suas verdades. Porque conhecer parece que virou sinônimo de rotular e fechar as coisas numa única possibilidade. E deveria ser o contrário. Descobrir para descobrir cada vez mais. Ontem, três crianças correndo, num espaço enorme vazio, que adultos andam e cruzam-se sem trocarem olhares. Correndo! Rindo! Dando cambalhotas! O que aconteceu com o nosso diálogo com as coisas? Parece que saber nos tira a experiência. Nesse sentido não quero crescer.
Sim, não se trata de crescer, trata-se de se abrir para experiências. Assim, usando o saber. Desconhecer por um segundo o lugar, o objeto, permitir-me atravessamentos.  É simples talvez. Veja, quando entro  no banho, sem pressa, e transformo a embalagem do shampoo em microfone posso atravessar-me com minha desafinação ou com um tom desconhecido, com a lembrança de alguém,  ou me lembrar de quando era criança e passava a tarde com meu primo cantando em cima de uma caixa de engradados da coca-cola. Outra bobagem. AtravessavA minha mãe, pelo menos.
Não há razão em nada do que digo. Mas direi. Há três dias atrás fui atravessada pelo papai-noel do Barrashopping. Sim, estou envergonhada com este compartilhamento. Mas faz parte do processo essa sinceridade toda, e, até me dói.. É sério. Fui comprar uma roupa para ir à formatura do meu primo, saí da loja e um sino tocou, as pessoas circularam a casinha dos doendes e do papai noel. E os atores de shopping, que estavam ali felizes, ou, provavelmente, fingindo felicidade, cantando e puxando palmas e criando uma certa expectativa para a chegada do velhinho barbudo que nada tem a ver com o Brasil (ou tem, já não sei). Não sei se, pelos olhos das crianças, pela música, pela expectativa, mas tive uma vontade de chorar como há muito não tinha. Fiquei prendendo um choro infantil, por vergonha ou por desentender o que meu corpo estava fazendo. Uma grande bobagem, mas acho que fazia tempo desconhecia essa sensação.

Conheço, todo dia, uma sensação de impotência. E sou todo dia travessada por ela. Conto:  Semana passada, saindo da uerj, conheci David, um menino de rua que veio pedir-me dinheiro para comprar fralda para a irmã. Ele me pediu licença, e me pediu dinheiro. Eu disse que não tinha. Realmente só havia cinco reais no meu bolso. Fomos conversando por um quarteirão. E eu fui ficando cada vez menor, fingindo que aquilo não me afetava, e tentando agir normalmente enquanto desconfiava que o dinheiro poderia ser para outra coisa. Ele me pediu para ir à farmacia na mangueira e comprar. E eu nem ei quanto custa um pacote de fralda. Perguntei: Você estuda? Ele desviou o olhar e disse "sim". Nao acreditei. Mas que direito eu tinha de duvidar do menino que há dias não tomava banho ou talvez nem tivesse o que comer, Não há naquele corpo tempo  e estrutura para ir à escola. Eu queria abraçá-lo, carregá-lo. Sei lá, qualquer coisas que me tirasse essa insignificação toda. Mas dei dois reais para ele. E ele saiu triste. O fato é que todo dia passo por esses meninos, todo dia eles me atravessam ( por medo, por pena por incompetência), ainda bem. Não quero achar isso normal . Pergunto: Esses atravessamentos que não modificam nada, nos servem?  O que me adianta, todo dia passar por um menino de rua e não modificar a situação dele? O prédio de onde escrevo , aqui perto de onde mora o David,  dia desses foi assaltado. Por um menino da idade do David e um outro maior. Queriam a bicicleta. Passaram pela grade, quebraram a porta de vidro. Ponto.

 


 "Desaprender oito horas por dia ensina os princípios" Manuel de Barros