\\ Pesquise no Blog

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Hilda Hilst - Uma mulher atravessada pela vida

DO DESEJO

I

Porque há desejo em mim,é tudo cintilância

Antes,o cotidiano era um pensar alturas

Buscando Aquele Outro decantado

Surdo à minha humana ladradura.

Visgo e suor,pois nunca se faziam.

Hoje,de carne e osso, laborioso, lascivo

Tomas-me o corpo.E que descanso me dás

Depois das lidas.Sonhei penhascos

Quando havia o jardim aqui ao lado.

Pensei subidas onde não havia rastros.

Extasiada,fodo contigo

Ao invés de ganir diante do Nada.

VII

Aquele fino traço da colina

Quero trancar na cancela

Da alma.Alimento e medida

Para as muitas vidas do depois.

Curva de um devaneio inatingido

Um todo estendido adolescente

Aquele fino traço da colina

Há de viver na paisagem da mente

Como a distância habita em certos pássaros

Como o poeta habita nas ardências.

XVII

As barcas afundadas. Cintilantes

Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante

E obscura barca ardendo sob as águas.

Palavras eu as fiz nascer

Dentro da tua garganta.

Úmidas algumas, de transparente raiz:

Um molhado de línguas e de dentes.

Outras de geometria. Finas, angulosas

Como são as tuas

Quando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.

Mas poderão arder luas de eternidade.

E doutas, de ironia as tuas

Só através da minha vida vão viver.

XIX

Empoçada de instantes, cresce a noite

Descosendo as falas. Um poema entre-muros

Quer nascer, de carne jubilosa

E longo corpo escuro. Pergunto-me

Se a perfeição não seria o não dizer

E deixar aquietadas as palavras

Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante

Ainda que imperfeito quer nascer.

Estendo sobre a mesa o grande corpo

Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar

Sobre as suas ventas. Nasce intensa

E luzente a minha cria

No azulecer da tinta e à luz do dia.


IV

Se chegarem as gentes,diga que vivo o meu avesso.

Que há um vivaz escarlate

Sobre o peito de antes palidez,e linhos faiscantes

Sobre as magras ancas,e inquietantes cardumes

Sobre os pés.Que a boca não se vê,nem se ouve a palavra

Mas há fonemas sílabas sufixos diagramas

Contornando o meu quarto de fundo sem começo.

Que a mulher parecia adequada numa noite de antes

E amanheceu como se vivesse sob as águas.Crispada.

Flutissonante.

Diga-lhes principalmente

Que há um oco fulgente num todo escancarado.

E um negrume de traço nas paredes de cal

Onde a mulher-avesso se meteu.

Que ela não está neste domingo à tarde, apropriada.

E que tomou algália

E gritou às galinhas que falou com Deus.


IV

Dirás que sonho o dementado sonho de um poeta

Se digo que me vi em outras vidas

Entre claustros,pássaros,de marfim uns barcos?

Dirás que sonho uma rainha persa

Se digo que me vi dolente e inaudita

Entre amoras negras,nêsperas,sempre-vivas?

Mas não.Alguém gritava:acorda,acorda Vida.

E se te digo que estavas ao meu lado

E eloqüente e amante e de palavras ávido

Dirás que menti?Mas não.Alguém gritava:

Palavras...apenas sons e areia.Acorda.

Acorda Vida.

VI

O que é a carne?O que é este Isso

Que recobre o osso

Este novelo liso e convulso

Esta desordem de prazer e atrito

Este caos de dor sobre o pastoso.

A carne.Não sei este Isso.

O que é o osso?Este viço luzente

Desejoso de envoltório e terra.

Luzidio rosto.

Ossos.Carne.Dois Issos sem nome.

VIII

Costuro o infinito sobre o peito.

E no entanto sou água fugidia e amarga.

E sou crível e antiga como aquilo que vês:

Pedras,frontões no Todo inamovível.

Terrena,me adivinho montanha algumas vezes.

Recente,inumana,inexprimível

Costuro o infinito sobre o peito

Como aqueles que amam.

X

Que te demores,que me persigas

Como alguns perseguem as tulipas

Para prover o esquecimento de si.

Que te demores

Cobrindo-me de sumos e de tintas

Na minha noite de fomes.

Reflete-me.Sou teu destino e poente.

Dorme.

AMAVISSE

Porco-poeta que me sei,na cegueira,no charco

À espera da Tua Fome,permita-me a pergunta

Senhor de porcos e de homens:

Ouviste acaso,ou te foi familiar

Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve

O verbo amar?

Porque na cegueira,no charco

Na trama dos vocábulos

Na decantada lâmina enterrada

Na minha axila de pêlos e de carne

Na esteira de palha que me envolve a alma

Do verbo apenas entrevi o contorno breve:

É coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso.

Sangra, estilhaça,devora,e por isso

De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora.

É verbo?

Ou sobrenome de um deus prenhe de humor

Na péripla aventura da conquista?

I

Carrega-me contigo,Pássaro-Poesia

Quando cruzares o Amanhã,a luz,o impossível

Porque de barro e palha tem sido esta viagem

Que faço a sós comigo.Isenta de traçado

Ou de complicada geografia,sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:

Para teu corpo de luz,dois fardos breves.

Deixarei palavras e cantigas.E movediças

Embaçadas vias de Ilusão.

Não cantei cotidianos.Só te cantei a ti

Pássaro-Poesia

E a paisagem-limite:o fosso,o extremo

A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.

No Amanhã.

II

Como se te perdesse,assim te quero.

Como se não te visse (favas douradas

Sob um amarelo)assim te apreendo brusco

Inamovível,e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,

A mim me fotografo nuns portões de ferro

Ocres,altos,e eu mesma diluída e mínima

No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens,nas estações

Ou contornando um círculo de águas

Removente ave,assim te somo a mim:

De redes e de anseios inundada.


obs:quem quizer mais dela tenho aqui...