DO DESEJO
I
Porque há desejo em mim,é tudo cintilância
Antes,o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor,pois nunca se faziam.
Hoje,de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo.E que descanso me dás
Depois das lidas.Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada,fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
VIIAquele fino traço da colina
Quero trancar na cancela
Da alma.Alimento e medida
Para as muitas vidas do depois.
Curva de um devaneio inatingido
Um todo estendido adolescente
Aquele fino traço da colina
Há de viver na paisagem da mente
Como a distância habita em certos pássaros
Como o poeta habita nas ardências.
XVII
As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro da tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.
As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através da minha vida vão viver.
XIX
Empoçada de instantes, cresce a noite
Descosendo as falas. Um poema entre-muros
Quer nascer, de carne jubilosa
E longo corpo escuro. Pergunto-me
Se a perfeição não seria o não dizer
E deixar aquietadas as palavras
Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante
Ainda que imperfeito quer nascer.
Estendo sobre a mesa o grande corpo
Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar
Sobre as suas ventas. Nasce intensa
E luzente a minha cria
No azulecer da tinta e à luz do dia.
IV
Se chegarem as gentes,diga que vivo o meu avesso.
Que há um vivaz escarlate
Sobre o peito de antes palidez,e linhos faiscantes
Sobre as magras ancas,e inquietantes cardumes
Sobre os pés.Que a boca não se vê,nem se ouve a palavra
Mas há fonemas sílabas sufixos diagramas
Contornando o meu quarto de fundo sem começo.
Que a mulher parecia adequada numa noite de antes
E amanheceu como se vivesse sob as águas.Crispada.
Flutissonante.
Diga-lhes principalmente
Que há um oco fulgente num todo escancarado.
E um negrume de traço nas paredes de cal
Onde a mulher-avesso se meteu.
Que ela não está neste domingo à tarde, apropriada.
E que tomou algália
E gritou às galinhas que falou com Deus.
IV
Dirás que sonho o dementado sonho de um poeta
Se digo que me vi em outras vidas
Entre claustros,pássaros,de marfim uns barcos?
Dirás que sonho uma rainha persa
Se digo que me vi dolente e inaudita
Entre amoras negras,nêsperas,sempre-vivas?
Mas não.Alguém gritava:acorda,acorda Vida.
E se te digo que estavas ao meu lado
E eloqüente e amante e de palavras ávido
Dirás que menti?Mas não.Alguém gritava:
Palavras...apenas sons e areia.Acorda.
Acorda Vida.VI
O que é a carne?O que é este Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor sobre o pastoso.
A carne.Não sei este Isso.
O que é o osso?Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos.Carne.Dois Issos sem nome.
VIII
Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e amarga.
E sou crível e antiga como aquilo que vês:
Pedras,frontões no Todo inamovível.
Terrena,me adivinho montanha algumas vezes.
Recente,inumana,inexprimível
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam.
X
Que te demores,que me persigas
Como alguns perseguem as tulipas
Para prover o esquecimento de si.
Que te demores
Cobrindo-me de sumos e de tintas
Na minha noite de fomes.
Reflete-me.Sou teu destino e poente.
Dorme.
AMAVISSE
Porco-poeta que me sei,na cegueira,no charco
À espera da Tua Fome,permita-me a pergunta
Senhor de porcos e de homens:
Ouviste acaso,ou te foi familiar
Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve
O verbo amar?
Porque na cegueira,no charco
Na trama dos vocábulos
Na decantada lâmina enterrada
Na minha axila de pêlos e de carne
Na esteira de palha que me envolve a alma
Do verbo apenas entrevi o contorno breve:
É coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso.
Sangra, estilhaça,devora,e por isso
De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora.
É verbo?
Ou sobrenome de um deus prenhe de humor
Na péripla aventura da conquista?
I
Carrega-me contigo,Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã,a luz,o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo.Isenta de traçado
Ou de complicada geografia,sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz,dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas.E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos.Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite:o fosso,o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.
II
Como se te perdesse,assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo)assim te apreendo brusco
Inamovível,e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres,altos,e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens,nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave,assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
obs:quem quizer mais dela tenho aqui...