Juliano Garcia Pessanha
(INSTABILIDADE PERPÉTUA, São Paulo: Ateliê Editorial, 2009)
(INSTABILIDADE PERPÉTUA, São Paulo: Ateliê Editorial, 2009)
Falo de uma topologia. É uma idéia, desde que se conceba idéia como um cadáver da experiência. Ou melhor, uma idéia é uma espécie de lixo ou de secreção de um trajeto ou de uma andança. Estamos indo, somos um foguete ou uma hera se alastrando sobre um muro branco; então, alguém chega para conversar, pergunta por onde andamos e o que brotou nessa andança e dessa andança. É nesse sentido que lhe contamos uma idéia: algo recolhido e testemunhado num trânsito. Algo para ser comemorado entre amigos. Ela serve apenas a isso! Não se autonomiza, não se destaca da conversação. Quando isso acontece, quando ela salta para fora da instabilidade perpétua, então ela vira “idéia”; vira um furúnculo no rosto ou uma espinha feia na testa. Irmã da desmedida, ela se converte numa medida em torno da qual se aninham as sentinelas do conceito a fim de estabilizar o trânsito ou deter o foguete.
Dito isso, nomeio a região topológica: há uma linha de horizonte, há um desfiladeiro frágil entre o buraco negro, onde zanzam os abismais, e o buraco branco, onde erram os figurantes. Entre os dois buracos situa-se a linha do acontecimento, linha onde o arrebatamento físico, consonante ao brotar incessante, encontra sua máxima absolvição e confiança. Essa topologia é resultado de uma ação centrífuga que separa radicalmente tudo que se encontra misturado. Ao separar, encontra tipos extremos e esses tipos permitem pensar humanidades, culturas, pensamentos e políticas. É uma grade para ser jogada fora logo que o olhar se aclimatou a todas as regiões e já não se encontra mais no risco de ser engolido pelo buraco branco ou pelo buraco negro.
Homens do buraco branco são os cidadãos da legalidade metafísica, os habitantes da representação e da palavra anticorpo. O segredo desses homens consiste em que vestiram o uniforme da identidade mundana e acabaram por se confundir com ele. Esse uniforme, enquanto camisinha gigante, blinda o corpo contra a visita apofática do buraco negro e contra a visita epifânica da criança na corredeira, criança em estado de milagre. O homem uniformizado é um assustado, pois o abrigo na forma da determinação identitária está sempre ameaçado pela latência dos chacais. Como ensiná-los a amar os chacais que estão à espreita?
Cito exemplos de uma tarde. Era num sítio e a luz dourada de cobre atravessava tudo, manchava os muros e invadia as frestas, mas ninguém se moveu e nenhuma palavra sangüínea honrou o sol declinante. Eu escutei: “Filha, pegue o casaco que já é hora do pôr-do-sol”. Mas então, para onde foi a luz dourada? E o “intercâmbio resplandecente” do corpo com o sol? A questões como essas o cidadão engolido pelo uniforme teria de responder: “Nós fabricamos um inconsciente. É a nossa vergonha, mas também nossa esperança. Ele é o lugar para onde passa aquilo que não estamos à altura de experimentar. Na verdade, nossa neurose é o sonho imposto no mundo do buraco branco. Como o buraco branco nos fixa na identidade da função, da competência-trabalho, temos de perseverar na figura e blindar-mo-nos contra o fluxo do arrebatamento. Ele destruiria tudo o que somos. Seríamos demitidos de nossa casa e nossa casa é o buraco branco”.
Na mesma tarde, no mesmo sítio, um garoto olhou o rosto iluminado da namorada e esse olhar era um olhar solar e todo o corpo do garoto parecia querer saltar na direção do abraço, mas a namorada, diante daquele olhar físico, perguntou: “Eu tô com espinha?” E essa era uma pergunta-caminhão. Vale dizer que enquanto o garoto corria numa bicicleta debaixo dos álamos com vários “coelhinhos de sol” nos pedais e no guidom, enquanto em sua boca brotava um sorriso, a menina-caminhão o atropelou. Caso perguntássemos a ela: “Você não reparou no olhar do seu namorado?” Ela responderia: “Não, não reparei; não entro em ressonâncias. Eu venho do buraco branco. Lá somos mágicos espíritas. Não temos corpo. Sou uma garota deduzida e emoldurada. Idéias e narrativas deduzem todos os meus gestos. Eles não nascem do corpo; não são inaugurais. São fabricados a partir dos relatos do buraco branco. Eu estou entupida por esses relatos. Eles me dão passagem por tudo. Não quero silenciar e viver a partir do desconhecido de um corpo. Não suporto que algo brote da região opaca e fértil da aletosfera. Eu seria demitida da minha casa e minha casa é o buraco branco”.
No mesmo dia, no mesmo sítio, já tinha anoitecido, mas apareceu uma outra notícia. Dois homens conversavam e davam muita risada enquanto olhavam numa parede fotografias antigas de pequenos aglomerados humanos em cidades do interior. Gente em volta de coreto e de igreja matriz. Alguns nos olhavam das fotos. Eu observei os homens dando risada, mas, de repente, percebi, bem na gravatinha borboleta de um deles, percebi que a morte estava sentada no topo da gravatinha e ela olhava constantemente tanto para o dono da gravata quanto para o seu interlocutor. Ela os namorava incessantemente, piscando para um e para outro, mas eles não a viam. Não correspondiam aos seus acenos.
Temer a morte e esquecê-la é a certidão dos homens do buraco branco. Se a vida, conforme escreveu um buraco negro chamado Fernando Pessoa, é o estar numa estalagem esperando a diligência do abismo, então, enquanto os homens do buraco branco entram para o hotel e desfazem as malas − e vão para o salão conversar, tendo inclusive fechado as janelas para não escutar o apito do trem da morte −, os homens do buraco negro nem chegam a cruzar a porta do hotel. Ficam em pé, na estação, sem desfazer as malas; sabem que o trem já está apitando. Homens do buraco negro são os antípodas do buraco branco. Eles são imiscíveis, pois a consistência metafísica do amparo no mundo desmorona completamente quando se abre um buraco.
Recentemente assisti na televisão uma cidade inteira sendo engolida por um misterioso buraco: casas, carros e igrejas, tudo estava desaparecendo sem parar. E as pessoas estavam assustadas, perplexas. Esse susto súbito, essa perplexidade momentânea é o afeto permanente; é o lugar natal do homem do buraco negro. Homens do buraco negro não entram em crise ou em estado de pergunta ao constatarem uma rachadura na casa ou um rasgão no uniforme. Não! Eles são uma crise permanente e uma questão contínua; jamais vestiram uniforme ou aconchegaram-se dentro de uma casa ou lar que pudesse rachar. Eles já moram na fenda e na rachadura! Ali onde o homem mundano escuta: “É câncer, são 7 meses...”; ali, para onde ele olha por um segundo, por um triz, nessa fresta de horror, é lá que o abismal esteve plantado a vida inteira. O abismal é pai e avô do câncer. Ele não precisa ter medo de morrer, pois já nasceu morto e aposentado. Seu desassossego é o não poder instalar-se no mundo, não poder fixar residência no buraco branco. Quando um abismal, um fendido, caminha à noite por uma cidade e olha para as luzes no interior das casas e dos prédios, então ele está se perguntando: “Mas como é possível a vida? Como é possível deter-se na faixa da presença, alcançar essa dimensão e aí acontecer? Como é possível ter biografia? Seria possível introduzir esse buraco (o desastre) na história e no tempo, sem destruí-los? Como é que eles não estão engolidos, por meio de que mágica migram para a segurança do mundo e de um si-mesmo? O que é, afinal, que eu sei e que não deveria saber?” Questões como essas revelam o segredo dos abismais.
Muitos desses segredos foram acolhidos e anotados por Maurice Blanchot. Ele saudou e honrou os abismais. Mostrou a dignidade da notícia que carregam. Para Blanchot, o excluído, ao dizer o mundo de seu tempo a partir do buraco, isto é, a partir do outro de qualquer mundo, protege o humano de uma absorção definitiva pelo buraco branco. A lonjura e a fuga permanente da palavra literária impedem qualquer fixação na forma-mundo, asseguram a vida insegura.
Essa topologia não pretende ontologizar as regiões. Tudo é passagem e tudo é trânsito. Se o homem do buraco branco pode ser devidamente estuprado e perder a medida do seu fundamento para, então, adentrar num devir-inconsciente e vagabundear na desmesura da amizade, também o homem do buraco negro espera o “sim” que o conduza até o fluxo arrebatado. Não é o “sim” do buraco branco; contra este, ele já está imunizado; é contra ele que gritou e escreveu, e foi por ter encontrado apenas ele que ficou interrompido. Mais dia, menos dia, ele pode confiar em algum convite. Não me refiro ao convite ocular dos filósofos brancos: “Veja o rio, pense o rio”, mas ao convite da mulher gestual e terrena: “Ponha o pé no rio, ponha as mãos na água”. Afinal, o humano não pertence nem só ao buraco onde não aparece e nem ao instituído onde desaparece. Entre o ser domado e o não ser se abre a região comovida do agradecimento e do encontro. “Queria ser um cometa? Acredito que sim. Cometas têm a velocidade dos pássaros, florescem ao fogo e na pureza são como crianças”. É um verso de Hölderlin, ele ensina que a incandescência nos aguarda... sempre −:
Para cada “mundo” existe um antimundo e um contramundo. Para todo não-mundo, uma passagem. Implosão e explosão contínuas, instabilidade perpétua.