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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS - Fichamento

David Lapoujade
(O corpo que não aguenta mais in NIETZSCHE E DELEUZE: QUE PODE O CORPO, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002)

Primeiro existe a questão do agente que age o ato em um corpo que possui a potência, é o que ilustra o exemplo do atleta que age o ato da corrida em um corpo que possui a potência. Consequentemente é depois do ato, ou melhor, depois do agente que a potência é revelada como tal. Nesse sentido, a questão sobre a potência do corpo parece inseparável de uma resposta que afirma de direito a superioridade do ato - e portanto, do agente- em relação à potência do corpo.

Todavia, em oposição a esta concepção, há um fato. Esse fato é que o corpo não agüenta mais e que ao mesmo tempo é desde sempre e pra sempre.

Tudo se passa como se o corpo não tivesse mais agente para fazê-lo ficar direito, organizado ou ativo. Não se pode falar da potência do corpo justamente porque o corpo não agüenta mais. Então se percebe que é preciso repensar a idéia de potência pois é evidente que todos os corpos são dotados de uma estranha potência , mesmo no esmagamento, uma potência superior àquela da atividade do agente. É preciso conceber uma potência que não mais se define em função do ato final que a exprime, isto significa encontrar uma potência própria do corpo, uma potência liberada do ato.

Antes de buscar essa potência entendemos que o corpo não agüenta mais aquilo a que o submetemos do exterior, formas que agem do exterior, essas formas são a do adestramento e da disciplina analisadas respectivamente por Nietzsche na “Genealogia da Moral” e por Foucault em “Vigiar e Punir”. A crueldade a que esses corpos são submetidos faz surgir uma outra questão, a do corpo e sua potência de resistir, a sua resistência ao cansaço e ao sofrimento. É desde sempre e pra sempre que o corpo não agüenta mais como também é desde sempre e pra sempre que resistimos, então essa resistência é um profundo fortalecimento, a constante de um limite ou de um “último nível”.

O corpo não aguenta mais também aquilo a que se submete de dentro. Como diz Nietzsche, ela lhe cria uma alma: “Todos os instintos que não se liberam para o exterior, se voltam pra dentro – é o que chamamos de interiorização do homem: eis a origem do que chamaremos mais tarde de sua “alma”. Nietzsche mostra assim como se cria uma alma para o corpo enquanto Deleuze e Guatarri mostram, inversamente, como se cria um corpo para esta alma.

O agente constrói um organismo que pode subordiná-lo. Aqui se encontram dois domínios onde a potência do corpo está submetida aos atos do agente que nele se forma: organização (Deleuze) e subjetivação (Nietzsche). E é na sua resistência a estas formas vindas de fora e que se impõe ao dentro para organizá-lo e lhe impor uma “alma” que o corpo exprime uma potência própria. O corpo sofre de um “sujeito” que o age – que o organiza e o subjetiva. Em outros termos, trata-se não apenas de tornar doente nosso corpo, mas de nos tornar doentes dessa doença. Assim é o sistema do Juízo de Deus, seguindo a fórmula que Deleuze e Guattari emprestam de Artaud. Pois a verdadeira doença não é estar doente, mas na cura, possuir remédios que pertencem ainda à doença.
Nietzsche mostra como o padre Judeu e depois o padre cristão transformam a dor em doença e a doença em mal. A religião tem por função essencial fazer da doença a condição da vida. A invenção da culpa nos cristãos tem por objetivo tornar o doente ainda mais doente. Tudo é pensado no cristianismo a partir do corpo mártir que toma pra si os sofrimentos sem nenhuma reação nem exteriorização, mesmo que adiada. Desde então, o sofrimento se torna sacerdócio, missão, fardo.

O corpo longe do sistema da crueldade próprio ao adestramento, só pode escolher entre uma doença (que assume a forma do ressentimento) e uma anestesia que é o seu inverso, a “narcose” de que fala Nietzsche a respeito do cristianismo. A vida como interminável neurastenia, quando a felicidade se torna essencialmente narcose, engorda, repouso, paz, alívio da alma e relaxamento do corpo ou seja, passividade.

Conservar e redobrar o sofrimento na doença, ou então se tornar insensível, “anestésico”. Tornar a vida doente ou desvitalizá-la: eis as alternativas que, nos dois casos, retiram toda a potência do corpo e a transferem ao agente, a uma “alma” que não passa, finalmente, de um sintoma dessa doença durável. E frequentemente as duas se associam; é ao mesmo tempo em que se está doente da vida e insensível a seus próprios sofrimentos. Pior ainda, se fica doente porque não se acede mais a seus próprios sofrimentos. E é justamente este o paradoxo: tornar a vida doente para separá-la do sofrimento. Todo o problema consiste, então, em encontrar uma saúde no sofrimento: ser sensível ao sofrimento do corpo sem adoecer. Parece ser a mesma questão em Nietzsche e Deleuze: que o sofrimento não seja mais uma doença, que ele se torne um meio para a saúde (não-médica) e para a salvação (não-teológica). Para isso, é preciso tornar a partir da questão do sofrimento e perguntar mais uma vez: que pode o corpo? O que é o corpo que sofre?

A primeira coisa, é que o sofrimento não é um estado particular do corpo. Sofrer é a condição primeira do corpo. Sofrer é a condição de estar exposto ao fora. Um corpo sofre de sua exposição à novidade do fora, ou seja, ele sofre de ser afetado. Como diz Deleuze, um corpo não cessa de ser submetido à erupção contínua de encontros, encontro com a luz, com o oxigênio, com os alimentos, com os sons e palavras cortantes. Um corpo é primeiramente encontro com outros corpos. O corpo é originariamente o sofrimento da impressão e o reconhecimento de uma potência estrangeira. Há uma patologia originária, uma passividade primeira e fundamental do corpo.

A questão: que pode o corpo? só é possível e só faz sentido a partir desse sofrimento primeiro. Que pode o corpo em face desse sofrimento que é sua própria condição? Ou se preferirmos: como um corpo detém ativo? A primeira condição, como já vimos, consiste em sentir este sofrimento, o “eu sinto” que é um “Eu não agüento mais”, pois esta exposição ao fora é insuportável. O corpo deve primeiro suportar o insuportável, viver o inviável. É o sentido do corpo-sem-órgãos em Deleuze: que o corpo passe por estados de torção, de dobramentos, que um organismo desenvolvido não suportaria.

Desde já, é evidente que o corpo deve montar mecanismos de defesa. É o nascimento da dor em Nietzsche. Nós interpretamos defensivamente estas exposições como dores. “A excitação mais violenta não é em si mesma uma dor: mas neste movimento que sentimos, o centro nervoso projeta a dor até o lugar da excitação. Esta projeção é uma medida defensiva e de proteção.”

Nosso corpo se protege contra os ferimentos que sofre, tanto pela fuga, pela insensibilidade, como pela imobilização (fingir-se de morto), ou seja, por processos de fechamento, de enclausuramento. O corpo não pode mais suportar certas exposições. De certa maneira reencontramos aqui a resistência ou o embrutecimento que o corpo manifestava contra os mecanismos de adestramento. Mas estes indispensáveis processos de defesa contra o sofrimento devem ser inseparáveis de uma exposição ao sofrimento, que aumenta a potência de agir dos corpos.Nietzsche diz que sofremos excitações e as excitações de que fala Nietzsche não são objetos que controlamos, que nos deixam indenes. São ferimentos que nos afetam no mais fundo de nós mesmo e que nos dão nossa potência de assimilação: “Crescimento da potência lá onde houve abundância de feridas mais sutis, através das quais aumenta a necessidade de apropriação”

A apropriação vem do fato de que o corpo não suporta a ferida, de que ele não agüenta mais. A potência do corpo (aquilo que ele pode) se mede pela sua exposição aos sofrimentos ou às feridas. Mas Nietzsche diz: as feridas são as mais sutis. Isto quer dizer que a exposição do corpo se faz no interior dos mecanismos de defesa...e que o protegem das feridas mais grosseiras. Sutil, aqui, não quer dizer leve ou benigno, mas ao contrário, quer dizer que as defesas operam suficientemente para que eu tenha acesso à profundeza e à violência de uma ferida sutil – ou inversamente, que eu tenha acesso à sutileza que esconde uma ferida grosseira.

Aquele que vê na ferida mais sutil algo sem importância é precisamente aquele que já não sente nada. Que erigiu um sistema de defesa que o impede de apreender a variedade de afecções, reduzindo-as a uma resposta uniforme. É aí justamente que se exerce a força dos fracos, daqueles que sentem o menos possível, pois já se separaram de sua sensibilidade, ainda piedosos.

Em contraponto a força do fracos, Bárbara Stiegler discorre sobre o paradoxo da fraqueza do forte. O que faz a fraqueza do forte é que ele se esforça para preservar e mesmo aumentar, sua vulnerabilidade, controlando seu grau de exposição às feridas do fora; se protegendo das agressões mais grosseiras, ele pode se abrir às feridas mais sutis.

Ser forte consiste primeiro em estar à altura de sua fraqueza. Só se cavam espaços, só se precipitam ou desaceleram tempos à custa de torções e deslocamentos que mobilizam e comprometem todo o corpo. Portanto, há sem dúvida atores e sujeitos, mas são larvas, porque são os únicos capazes de suportar os traçados, os deslizamentos e rotações...e é verdade que toda idéia nos faz larvas..as larvas trazem as idéias em sua carne....não se trata mais de se fazer sujeito ou “agente”, mas ao contrário, de re-devir “larva” seguindo uma estranha involução criadora reclamada por Deleuze. Nos encontramos aqui diante de um corpo sem agente.

Não saímos ainda do paradoxo inicial: de um lado “Eu não agüento mais” (tudo aquilo de que devo me defender, daquilo que meu corpo sofre e me faz sofrer) do outro um “Eu sinto” (no sentido em que nos abrimos a tudo aquilo que advém sob o regime do sutil). Se fechar para se abrir é o paradoxo da prudência, enunciado por Nietzsche e Deleuze. Mas este paradoxo é primeiramente o paradoxo da relação entre nossa receptividade e nossa espontaneidade que, juntas e inseparavelmente, testemunham aquilo que pode o corpo. É o próprio daqueles a quem Nietzsche chama de homens superiores: “Os homens superiores são os que mais sofrem com a existência – mas possuem também as maiores forças de resistência.

O ‘eu não agüento mais” não é portanto, o signo de uma fraqueza da potência, mas exprime, ao contrário, a potência de resistir do corpo. Cair, ficar deitado, bambolear, rastejar são atos de resistência. É a razão pela qual toda doença do corpo é, ao mesmo tempo a doença de ser agido, a doença de ter uma alma-sujeito, não necessariamente a nossa, que age nosso corpo e o submete às suas formas.

(O TEXTO QUE AQUI SE ENCONTRA NÃO É O ORIGINAL, ESSE É UM FICHAMENTO FEITO POR MIM.)