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domingo, 7 de novembro de 2010

"A Experiência da ‘Não-Forma’ e o Trabalho do Ator"

Cassiano Sydow Quilici
(PUC-SP – UNICAMP)

No teatro moderno e contemporâneo, várias pedagogias do ator propõem a reconstrução do “corpo cotidiano” enquanto estratégia fundamental para a elaboração da “presença” cênica. Espera-se dessa “presença” uma espécie de eficácia comunicativa que é anterior, do ponto de vista lógico, ao ato de interpretar um papel ou comunicar uma história. A “presença seduziria” (E. Barba) não tanto por ser um signo a ser lido ou decifrado, mas, sobretudo, por sua intensidade, sua qualidade energética, afetando o espectador principalmente por canais sensoriais. A discussão da “presença” tem um lugar importante na problematização do teatro como “representação”. Identificada a uma dimensão “pré-expressiva”, ela pode ser trabalhada independentemente das convenções teatrais que constroem um mundo ficcional (personagem, enredo etc). O seu contraponto é, acima de tudo, o comportamento cotidiano, do qual ela pretende ser uma transformação intensiva. A partir daí o teatro pode ser pensado como uma metamorfose do cotidiano que não desemboca necessariamente nas formas de representação convencionais. Aposta-se num “teatro das energias” (Lyotard), que opera no limite tênue entre ficção e acontecimento em momento presente, questão que mobilizará também artistas ligados à performance1.
1 Sobre a atuação do performer, Denise Stoklos afirma: “O ator de ficção está mais longe da platéia, ele está engajado com o personagem, comprometido. O performer solo não tem nada que o retire da presença absoluta de seu corpo, sua voz e sua capacidade intelectual /intuitiva de organizar os dois juntos.” (grifo meu)
O que chamarei aqui de “experiência da não forma” pretende recolocar o problema da reconstrução do corpo cotidiano numa certa perspectiva, gerando também questionamentos sobre os modos de compreensão da “presença”. Para tanto retomo algumas colocações que aparecem nos últimos textos de Artaud, que definem o teatro como o próprio lugar da gênese de um outro corpo para o homem:

“O verdadeiro teatro sempre me pareceu o exercício de um ato perigoso e terrível, onde aliás a idéia de teatro e de espetáculo se elimina (...) o ato de que eu falo visa a total transformação orgânica e física do corpo humano.” (apud Virmaux, 321:1978)

“O teatro jamais foi feito para nos descrever o homem e o que ele faz, mas para nos constituir um ser de homem que possa nos permitir avançar no caminho, vivendo sem supurar e sem feder.” (apud Virmaux, 320:1978)

A urgência do teatro nasce aqui de uma insatisfação profunda com o achatamento dos modos de ser do homem, no mundo atual. O “homem-carcaça” (Artaud) está enclausurado em certos estados corporais e a função maior do teatro, aquilo que lhe confere um sentido superior, consiste na recuperação dos meios de transformá-los. A questão da reconstrução do corpo cotidiano é colocada aqui num novo patamar. Não se trata de pensá-la apenas como técnica de produção de um corpo para a cena, já que a própria idéia de espetáculo é também colocada em cheque. Trata-se de investir numa poética da reconstrução do homem, a partir da abertura para outras possibilidades de ser.

Para pensar essa poética é pertinente tomar o corpo cotidiano na sua dimensão reativa. Ele se constituiria também a partir da recusa de experiências que ameaçam as representações ilusórias de sua própria estabilidade e identidade. Na sua positividade, o comportamento cotidiano é funcional e adaptativo, “dócil e produtivo” (M. Foucault), o que torna possível seu claro engajamento nos organismos sociais. Mas a estabilidade dos hábitos e das representações cotidianas implicaria também num “recuo em relação a nossa própria obscuridade” (Blanchot). Aquilo que foge ao domínio das representações, que emerge nas lacunas e fissuras do simbólico, que flutua numa região de incertezas, tende a ser ignorado e esquecido.

A compreensão dessa espécie de “recalque” exige que abordemos o processo incessante de produção de representações, que opera num nível microscópico, na construção das próprias percepções. O contato constante do “corpo-mente” com estímulos variados faz originar simultaneamente sensações e percepções, construídas e interpretadas segundo padrões habituais aprendidos e herdados. A experiência ganha forma e estabilidade nas representações elaboradas a partir da seleção de elementos recorrentes e regulares2. O corpo cotidiano se constitui no recorte e na ligação de seus fluxos, na canalização de seus apetites e energias.

Pode-se dizer que sem tais mecanismos, que estão na base de nossos hábitos, a vida cotidiana seria impossível. Ela exige um certo grau de constância, previsibilidade, convenção, regularidade. Mas na raiz desse processo encontra-se também um desejo de controle, de fixação e permanência, que tende a negar a singularidade do acontecimento. O fascínio da repetição e o desejo de apossar-se das experiências expressam também um ressentimento contra a impermanência de todos os fenômenos. O cotidiano torna-se assim o lugar de um esquecimento, um perder-se nas ocupações.

A arte pode aparecer justamente como espaço possível para o “retorno do recalcado”: a oportunidade de sustentar a abertura para o que ultrapassa o representável. Se “o ator é o poeta da ação” (Luis Otávio Burnier), essa abertura tem de ser construída no corpo. A desmontagem do corpo cotidiano significa, no limite, tornar acessível à experiência da “não-forma”. O corpo informe se mantém no fluxo contínuo de sensações, afetos, percepções, que aparecem e se dissolvem incessantemente, sem querer agarrá-las ou rejeitá-las. A vivência desse fluxo exige o desprendimento progressivo do “dialogo interior” que compõe costumeiramente o nosso teatro mental. George Bataille, escrevendo sobre o que chama de “experiência interior”, afirma a necessidade de se sair da região das palavras, essa “multidão de formigas que não descansam”, para poder habitar os “movimentos interiores vagos, que não dependem de nenhum objeto nem de nenhuma intenção” (22:1992). Roland Barthes, de modo semelhante, refere-se a uma “idiosfera”, ou “um sistema de linguagem que fala na cabeça de cada um”(190:2003). Essa série de visões subjetivas é infinita, operando como uma espécie de “trabalho forçado da linguagem”. É o que chamei de produção incessante de representações. Ela pode produzir uma ilusão de consistência do sujeito, que preenche e fascina.

Desviar-se desse verdadeiro “sistema de forças”, que nos prende numa espécie de fantasmagoria, mobiliza, muitas vezes, ansiedades relativas à desintegração de nossa imagem e à morte. Artaud se refere à “angústia que está na base de toda verdadeira poesia”. O fazer poético exigiria a conquista da intimidade com os espaços informes, que podem conduzir a dissolução da própria representação do “sujeito”. “Escrevo para morrer, para dar a morte sua possibilidade essencial” (Kafka). Descobrir a “morte do sujeito” como experiência limite, torna-se aqui um processo intimamente ligado ao emergir da linguagem poética. Experiência de uma lenta maturação, cuja metáfora privilegiada no campo do teatro talvez ainda seja o da “eclosão da flor”, de Zeami.
2 Esse modelo encontra respaldo em teorias das ciências cognitivas que dialogam com o pensamento budista. A este respeito ver Varela (2003).
É dessa familiaridade paradoxal com o informe e com a impermanência, vivida no próprio corpo e nas relações, que poderá surgir uma nova qualidade de “ação” e de “presença”. A princípio, a experiência da “não-forma” é também uma “não-ação”. Ela exige o desapego de qualquer noção de projeto, qualquer expectativa de resultados. A dificuldade reside justamente na suspensão dos objetivos, das relações de uso e da nossa usura (o “sujeito” se constrói a partir de seus “afazeres”). A rigor, nada menos espetacular e teatral. No entanto, do mergulho nessa ausência, nesse “não querer agarrar nem rejeitar”, brota uma singular disposição. A “presença” pautasse então numa atitude desarmada, num corpo que não se defende dos fluxos que o atravessam, surgindo e desaparecendo incessantemente. A ação pode nascer sem negar essa dimensão obscura e ilimitada de onde ela mesma provém.

Para Hölderlin, o poeta expõe-se à força do indeterminado, sustentando essa abertura. Ao mesmo tempo, ele deverá ser o mediador, aquele capaz de moldar a forma que acolhe o puro fluir silencioso. Ao ator cabe descobrir os modos do agir e estar junto às coisas a partir da intimidade com as dimensões profundas que se abrem também no seu próprio corpo.

“A experiência não pode ser comunicada se os laços de silêncio, de desaparecimento, de distância, não mudam aqueles que ela coloca em jogo.” (Bataille, op. cit, 92)